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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Fogo Selvagem - Zane Grey - Faroeste

FOGO SELVAGEM


ZANE GREY


A par do crescente ódio de Bostil pelos Creech, ele sentia um grande medo de Cordts, o ladrão de cavalos. Um medo que não descansava, sempre alerta. Cordts escondia-se
nos ermos inexplorados. Tinha amigos secretos entre os vaqueiros da cordilheira e sempre obtivera o que desejava.
Cordts era fruto dos primeiros campos de ouro da Califórnia e de Idaho, oriundo da onda nefasta de vagabundos que agora retomavam pelos trilhos, vindos de oeste.

Wild Fire era um assassino,
um cavalo diabólico
que nenhum homem conseguia dominar.
Um garanhão
selvagem como as colinas onde nascera,
rubro como o entardecer nas montanhas.
Bostil lutava para o obter - e poucos homens se atreveram a impedi-lo.
Nos grandes espaços, ao longo dos canyons, travar-se-á uma luta sem quartel por um cavalo e por uma mulher.

Índice


CAPÍTULO I - O RANCHO DE BOSTIL ......... 5
CAPÍTULO II - UM BANHO DE LAMA ...... 9
CAPÍTULO III - A LOUCURA DE JOEL CREECH .......... 15
CAPÍTULO IV - O CAÇADOR DE CAVALOS ........ 23
CAPÍTULO V - NA RAVINA ......... 29
CAPÍTULO VI - APANHADO! .......... 38
CAPÍTULO VII - UMA BATALHA NO FUMO ............ 44
CAPÍTULO VIII - DOIS CAVALOS E UM HOMEM .......... 48
CAPÍTULO IX - OS PREPARATIVOS DE UMA GRANDE CORRIDA . 58
CAPÍTULO X - Wild Fire SERÁ TEU ........... 66
CAPÍTULO XI - UM RIO INFERNAL ............ 72
CAPÍTULO XII - A CORRIDA ............. 77
CAPÍTULO XIII - UMA NUVEM DE PÓ ............. 86
CAPÍTULO XIV - A AQUISIÇÃO DE SLONE ......... 94
CAPÍTULO XV - NOS CAMPOS DE ALGODÃO ......... 105
CAPÍTULO XVI - O RESGATE .............. 110
CAPÍTULO XVII - MANDEM O KING .............. 120
CAPÍTULO XVIII - A PERSEGUIÇÃO ................ 123
CAPÍTULO XIX - ATRAVÉS DAS CHAMAS .............. 128
CAPÍTULO XX - AQUI ESTÁ O KING ............ 133


CAPÍTULO I

O RANCHO DE BOSTIL


Por alguma razão o desértico cenário em frente de Lucy Bostil lhe fez acordar várias emoções - uma doce gratidão pela plenitude da sua vida ali no rancho, misturada,
no entanto, com a sensação perseguidora de que a sua felicidade não podia ser completa -, uma vaga solidão na alma e uma ansiedade e um receio pelo futuro desconhecido.
Ela ansiava por que algo acontecesse. Poderia ser terrível, mas ao mesmo tempo maravilhoso. Nesse dia em que Lucy saíra num cavalo proibido, completava dezoito anos.
A recordação de sua mãe, que morrera já há longo tempo a caminho deste deserto, era a única tristeza que ensombrava a sua felicidade. Lucy gostava de toda a gente
do rancho de Bostil, e toda a gente a amava. Adorava toda a espécie de cavalos, à excepção do cavalo de corrida preferido de seu pai, aquele mau e demoníaco cavalo,
o grande Sage King.
Lucy resplandecia, contemplando com amor tudo o que o seu elevado poleiro lhe permitia abranger; a florescente aldeola verde e cor-de-rosa lá em baixo, situada entre
a beleza cinzenta de uma extensa planície e o espectro estéril de algumas elevações; a corrente do Colorado troando com aspereza na ravina; os índios brilhando coloridos
seguindo o trilho do rio; a águia pairando nos ares como uma pluma; umas milhas mais abaixo o gado que pastava transformado em pequenos pontos negros na pradaria;
o azul-celeste e aveludado do céu; as luzes douradas nos cumes descobertos, o véu lilás das ravinas distantes; o ruído sedoso de uma andorinha descendo na brisa;
a fragância do cedro, as flores pontiagudas dos cactos; o silêncio pensativo; o purpúreo horizonte.
Numa manhã de Primavera, como era seu costume, Bostil ordenou que trouxessem os seus cavalos de corrida e os soltassem. Ele adorava sentar-se ali a contemplar os
seus cavalos pastando, mas verificava sempre se os seus homens se encontravam por perto e se os cavalos não passavam o declive da pradaria. Recostou-se contemplando
consolado o
panorama. Possuía muitos cavalos: ali perto havia um campo onde eles pastavam, fogosos. No entanto, Bostil só tinha olhos para os seus puros-sangues.
Ali estava Plume. uma soberba égua que devia o nome à maneira como a sua crina flutuava no ar quando corria; e ali estava Two Faces, coquete. lustroso e destro,
e o enorme e esguio Dusty Ben; o negro garanhão Sarchedon e por fim Sage King, cinzento como a planície corredor de constituição, um cavalo belo e altivo.
- Onde está Lucy? - perguntou Bostil.
Um vaqueiro vira Lucy sair a cavalo com o seu cabelo dourado esvoaçando. Era a história do costume.
- Ela saiu no Buckles? - inquiriu Bostil, virando-se repentino para o homem que lhe respondera.
- Acho que sim - foi a impávida resposta. Bostil praguejou.
- Farlane. tu sabias as ordens. Lucy não deve montar estes cavalos e muito menos o Buckles. Nem para um homem ele é seguro.
- Bem. para Lucy ele é seguro.
- Ela tem de se manter afastada da pastagem - resmungou Bostil. Não é nada seguro para ela. Que são aquelas nuvens de pó na planície? Antílopes? Holley, tu tens
melhores olhos do que eu, usa-os, sim?
Um vaqueiro de olhos de falcão e cabelo grisalho inclinou-se indolente e aproximou-se com as esporas tinindo.
- Ali em baixo - apontou Bostil.
- É um bando de cavalos selvagens - explicou Holley.
- Hum! Não estou a gostar disto. Lucy não devia montar sozinha.
- Bem. chefe, quem é que a apanha no Buckles? Lucy sabe montar. E mesmo debaixo dos seus olhos estão King e Sarch, os únicos cavalos de toda a pradaria capazes de
bater Buckles.
- Pela primeira vez tens razão, Farlane - suspirou Bostil. - Mas eu não estava só a pensar no perigo. Lucy consente que o meio maluco do Creech a acompanhe.
- Não. chefe, está enganado - cortou Holley fervorosamente. - Eu conheço a menina. Ela não chama Joel. Ele é que vai a correr atrás dela.
Um outro vaqueiro de olhar perspicaz chamou a atenção de Bostil para a cinzenta pastagem.
- Bostil. olhe. Olhe para King. Anda à procura de alguma coisa. E Sarch também.
Os dois cavalos olhavam na direcção de uma elevação poucos metros adiante, com as cabeças erguidas e as orelhas espetadas para a frente. Sage King resfolgava asperamente
e Sarchedon começara a relinchar.
- Rapazes, é melhor trazê-los para dentro - disse Bostil. - Não há nada que eles mais gostem do que sair para a planície. Olá, que é aquilo atrás do monte?
- Nada mais do que Buckles com Lucy a fazê-lo correr bem - retorquiu Holley com uma gargalhada seca.
- E é mesmo. Meu Deus, olhem para aquilo!
O declive na sua frente estava visível e quase nivelado até à vala que escondera a rapariga e o cavalo. Buckles corria pelo gosto de correr, e a moça debruçada no
seu pescoço cavalgava pelo prazer de cavalgar.
Sage King tornou a resfolgar e partiu graciosamente ao encontro deles; Sarchedon apressou-se a segui-lo; Two Faces e Plume, ciumentos, partiram também, mas Dusty
Ben, depois de levantar a cabeça, continuou
a pastar.
O cavalo cinzento e o preto chegaram a Buckles e não conseguiram virar. Um grito alegre da jovem fez-se ouvir e Buckles corria cada vez mais velozmente. Sarchedon
foi deixado para trás. Então o cinzento King, que antes seguia a trote, começou a galopar. Isto era um jogo, uma corrida, completamente dominada pelo espírito da
rapariga.
O cabelo de Lucy era uma brilhante mancha de ouro ao vento. Ela montava sem sela. Ela e o cavalo pareciam constituir um único elemento. E de novo se fez ouvir um
grito alegre e selvagem - chamada, riso ou desafio. Sage Kíng, com uma leveza que fez os olhos de Bostil e dos seus homens brilharem, Tomou o comando, e então desviou-se
para abrandar, enquanto Buckles, ruidoso, continuava. Lucy puxava-o com força, tentando pará-lo, quando Holley correu e lhe agarrou o freio.
- É escusado, Lucy - disse Bostil. - Não consegues vencer King, na tua própria corrida, nem mesmo com um certo avanço.
Os olhos de Lucy Bostil eram azuis, tão penetrantes como os de seu pai e agora brilhavam tanto como os dele. Com uma mão ela agarrava a longa crina do cavalo, enquanto,
flexível e ligeira passava um joelho pelo seu largo dorso, agitando o pequeno punho na direcção do cavalo cinzento
de Bostil.
- Sage King, odeio-te - gritou ela, como se o cavalo fosse humano.
- Qualquer dia venço-te.
Bostil jurava por todos os deuses que o seu Sage King era o mais veloz de todos os cavalos daquela zona selvagem, repleta de óptimos exemplares. Ele garantia que
o seu cinzento podia olhar por cima da garupa e distanciar-se de qualquer outra montada.
O gado e os cavalos de Bostil eram inúmeros, e mesmo tendo muitos vaqueiros, ele poderia empregar mais. Mas a maioria não ficava muito tempo ao seu serviço - primeiro,
porque alguns eram de raça nómada, eles mesmos caçadores de cavalos selvagens; e, em segundo, porque Bostil tinha dois grandes defeitos: raramente pagava em dinheiro
e nunca permitia a ninguém ter um cavalo veloz. Queria possuir todos os cavalos rápidos.
Sempre que Bostil não conseguia obter um cavalo que cobiçasse, quer pela perseguição quer pelo negócio, entrava invariavelmente em conflito com o seu proprietário.

6 - 7

Isto acontecia frequentemente, pois os homens eram relutantes em se desfazer dos seus favoritos. E conseguiu fazer mais do que um inimigo com esta enervante persistência.
Do outro lado do Colorado, numa ravina alta e avermelhada, que se estendia até ao rio, vivia um pobre pastor de ovelhas e comerciante de cavalos chamado Creech.
Este homem possuía alguns puros-sangues, dois dos quais não vendia nem por todo o ouro das montanhas. Estes corredores, Blue Roan e Peg, tinham sido capturados por
índios utes e treinados para correr. Creech ria-se de todas as ofertas e escarnecia de Bostil dizendo que no próximo Verão King seria batido.
Para agravar as coisas, e levar a rivalidade até ao ódio, o jovem Joel Creech, grande conhecedor de cavalos, apenas reconhecido por seu pai, foi ouvido a afirmar
que qualquer dia forçaria uma corrida entre King e Blue Roan.
Esta ameaça foi interpretada de várias maneiras. Bostil perdeu todas as esperanças de uma reconciliação. Lucy riu-se e tornou-se suavemente misteriosa. Diziam as
mulheres do rancho de Bostil que ela tinha mais do que um fraco pelo ídolo Joel. Mas os maridos das mexeriqueiras afirmavam que Lucy era apenas muito terna e sensível.
i
Sempre fora o assunto favorito, este da tão ansiada corrida. E acentuou-se, ainda mais este interesse quando se tornou conhecida a inclinação de Joel por Lucy. Todos
os homens que gostavam de cavalos e todas as mulheres que gostavam de mexericos estavam de acordo pelo menos num aspecto, de que algo como uma corrida ou como um
romance em breve iria perturbar a calma e a sonolência do rancho de Bostil.
A par do crescente ódio de Bostil pelos Creech, ele sentia um grande medo de Cordts, o ladrão de cavalos. Um medo que não descansava, sempre alerta. Cordts escondia-se
nos ermos inexplorados. Tinha amigos secretos entre os vaqueiros da cordilheira, seguidores fiéis nos campos da ravina. Escavava ouro, possuía gado e cavalos rápidos.
Sempre obtivera o que desejava, à excepção de Sage King.
Cordts era fruto dos primeiros campos de ouro da Califórnia e de Idaho. oriundo da onda nefasta de vagabundos que agora retomavam pelos trilhos, vindos de oeste.
Ele tornou-se um senhor entre os montanheses livres. Mas acima de tudo era um vaqueiro e um conhecedor de cavalos. A paixão que alimentara por Sage King era a paixão
de um homem por uma mulher inacessível. Cordts jurara não descansar e não morrer enquanto não obtivesse King.

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CAPÍTULO II

UM BANHO DE LAMA


Bostil dirigiu-se a casa com a filha, virando-se ao chegar à porta para dirigir uma última palavra aos seus homens acerca do tratamento dos cavalos.
A casa era de estrutura baixa, ampla e rasteira, com um corredor que a atravessava de lés a lés e cujas portas conduziam aos quartos. As janelas eram pequenas aberturas
elevadas, que tanto serviam para iluminação como para defesa, e fechavam com fechos de madeira tosca. O chão era de argila, e quase todo coberto com tapetes índios.
Quando Bostil entrou, rodeando Lucy com um braço, um cão enorme levantou-se do chão. Este compartimento era enorme, a todo o comprimento da casa, onde, numa lareira
de pedra, uma chaleira fumegava perfumada. Algumas toscas cadeiras artesanais faziam conjunto com as mesas, as paredes estavam cobertas com espingardas e pistolas,
armas e ornamentos índios e troféus de caça. Num canto mais afastado havia um banco de trabalho que continha ferramentas e armadilhas para cavalos. No canto oposto
uma porta conduzia à cozinha.
A irmã de Bostil entrou, vinda da cozinha. Era uma pessoa baixa de cara severa e no entanto maternal. Trazia as mãos nas ancas e dirigiu um olhar reprovador a pai
e filha.
- Com que então já voltaram? - inquiriu severamente.
- Claro, titi - respondeu a rapariga.
- Tu saíste a correr para ver o Wetherby. não foi? Lucy encarou docemente a tia.
- Há horas que ele estava à espera - continuou a valorosa mulher. - Nunca vi um homem em semelhantes assados. Não admira, jogando e brincando com ele como tu fazes.
- Eu disse-lhe que não - retorquiu Lucy.
- Mas Wetherby não é daqueles que aceita uma negativa. Tens brincado demasiado com os homens de teu pai. Se não tens cuidado ainda casas com um deles... Wetherby
é jovem e idolatra-te. Por que não o aceitas sensatamente?
- Ele não me interessa - replicou Lucy.
- Interessa-te tanto como outro qualquer. John Bostil, que achas?
- Claro que gosto de Jim - interrompeu Bostil evitando o olhar agudo de Lucy.
- Bem? - interrogou a sua irmã.
- Olha lá. Jane - disse Bostil em tom de conclusão -, a rapariga é maior e pode fazer aquilo que lhe apetece.
- É uma linda coisa para se dizer -- reprovou a tia Jane.

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- Mesmo que não gostes, qualquer dia ainda te traz aquele cão do Joel Creech para tu o sustentares.
- Tia - gritou Lucy, com os olhos arregalados.
- Oh, garota, tu atormentas-me e preocupas-me tanto! - disse desapontada a senhora. - É tudo para teu bem. Olha para ti, Lucy Bostil. Uma rapariga de dezoito anos
e de família, e andas por aí vestida de homem.
- Mas, querida e velha tia, eu não posso montar de saias - expôs Lucy. - Desculpe, tia, mas eu sei montar.
- Lucy, por muito tempo que aqui viva nunca me vou conformar em ver uma Bostil de calças. Nós, os Bostil, éramos alguém lá no Missuri.
Bostil riu-se.
- Sim. e se eu não tivesse apanhado o caminho para o oeste, ainda estaríamos a morrer à fome. Jane, és uma velha sentimental. Deixa a rapariga sossegada e conforma-te
com este deserto selvagem.
Os olhos da tia Jane encheram-se de lágrimas. Lucy ao vê-las correu para ela a beijá-la.
- Titi; eu prometo... que, a partir de hoje... terei alguma dignidade. Tenho sido livre como um rapaz nestas roupas de montar. Como estou agora, os homens nunca
me olham como se fosse uma rapariga. De qualquer maneira isso é bom. Não sei porquê, mas gosto assim. Os meus vestidos são a causa de todos os problemas. Eu sei
disso. Mas já que estou a crescer, se é assim tão horrível, eu passarei a usar sempre vestidos, excepto quando for montar. Está bem assim, tia?
- No fim de contas talvez estejas a crescer- replicou a tia admirada e feliz.
Então Lucy correu para o seu quarto, fazendo tinir as esporas, e a tia Jane voltou aos seus afazeres domésticos.
Lucy regressava, agora uma outra Lucy que, se não despertava o orgulho dos montadores, agitava o coração de seu pai. Ela, que antes parecia um insignificante, dócil
e desgrenhado rapaz, respirando o puro ar selvagem e exalando o odor do cavalo que montara, tinha-se tornado numa jovem de figura esbelta e graciosa, com o seu cabelo
louro a lembrar o pôr do Sol da planície, os olhos azuis, profundos e escuros, e os lábios vermelhos como rosas da planície. Tudo nela era diferente.
- Lucy. quero-te perguntar uma coisa - disse Bostil. - Que é que há com o Joel Creech?
- Que quer dizer com isso?
- Lucy, há alguma coisa entre ti e ele? - perguntou gravemente.
- Não - replicou ela, enfrentando-o com os seus límpidos olhos. Bostil comparou-os a um amor-perfeito.
- Peço desculpa - apressou-se a acrescentar.
- Papá. tu sabes como o Joel anda atrás de mim. Eu disse-te. E eu tenho-o deixado andar. Eu gostava dele. lamentava-o.
- A sério? Parece-me uma enorme perda de tempo - replicou Bostil.
- Pai. não acredito que o Joel seja totalmente perfeito de juízo - disse Lucy solenemente.
- Andar sempre atrás de ti. Não é caso raro por aqui. Olha para...
- Nós falávamos de Joel Creech. Ultimamente tem agido de uma maneira esquisita. Hoje. por exemplo. Eu pensava que o tinha despistado, mas ele devia estar à espreita.
De qualquer maneira, para minha surpresa, apareceu com Peg. É raro atravessar o rio com Peg. Ele diz que aí a comida está a escassear. Eu estava mortinha por fazer
uma corrida entre Buckles e Peg. mas lembrei-me que o pai não iria gostar.
- De maneira nenhuma - respondeu Bostil sombriamente.
- Bem. Joel apanhou-me, e não foi nada simpático. Discutimos, ele irritou-se e regressou. Quando eu regressava a casa, vi Peg a pastar na margem da enseada, ao pé
daquela grande cova, onde a água é profunda e límpida. Que é que pensa? Lá estava a cabeça de Joel à tona da água. Quando me viu... ele... então... ele... - gaguejava
Lucy. corando.
- Bem, então, o quê? - inquiriu Bostil.
- Ele chamou-me: "Hei, Lucy. despe-te e vem nadar." Bostil praguejou.
- Eu gritei: "Eu tramo-te Joel Creech." As suas roupas estavam empilhadas na margem. Primeiro ainda pensei em atirá-las à água, mas quando lhes peguei ocorreu-me
uma ideia ainda melhor. Apanhei a roupa toda. à excepção dos sapatos, pois lembrei-me das dez milhas de pedras e cactos que o distanciavam de sua casa. e montei
no Buckles. Joel gritava e praguejava. Mas eu nem olhei para trás. E Peg. o pai sabe. talvez não saiba, mas Peg gosta de mim e seguiu-me, arrastando o freio pelo
caminho. Deitei as roupas de Joel a meio do caminho, de maneira que ele não as pudesse perder. E é tudo. pai, fiz muito mal?
- Mal? Mas tu devias era atirar-lhe com uma arma. Mas talvez tenha sido o suficiente. Acho que nem deves ter pensado nisso.
- Em quê?
- O sol está forte hoje. Escaldante. E se Joel é tão maluco como tu dizes, não terá senso suficiente para se manter na água ou à sombra até o sol baixar. E se ele
percorre as dez milhas, vai apanhar uma insolação em todo o corpo.
- Insolação?... Oh. pai! Eu lamento muito - gritou Lucy contristada. - Não pensei nisso. Vou-lhe lá levar a roupa.
- Ó rapariga, não tens nervo suficiente para levares o teu jogo até ao fim? Deixa que Creech apanhe uma lição. Ele merece-a. E agora. Lucy. tenho duas perguntas
para te fazer.
- Só duas? - inquiriu ela ironicamente. - Não me encha de
perguntas.
- Que queres que diga a Wetherby, uma vez por todas?

10 - 11

- Diga-lhe para voltar para Durango e esquecer a rapariga pateta que só se preocupa com o deserto e com cavalos.
- Está bem. Isso é que é ser directo como um índio. E agora a última pergunta: que queres de presente de aniversário?
- Ah. claro! - gritou ela batendo as mãos alegremente. - Tinha-me esquecido. Eu faço dezoito anos.
- Já ganhaste aquela velha cómoda da tua mãe. Mas, de mim, que é que queres?
- Pai, dás-me qualquer coisa que eu peça?
- Sim, minha filha.
- Qualquer coisa? Qualquer cavalo?
- Claro, todos menos King.
- Que tal Sarchedon?
- Mas, Lucy, que vais tu fazer com esse demónio negro? Ele é demasiado alto. Dezassete palmos de altura, não o podes montar.
- Puuh! Sarch ajoelha-se perante mim.
- Menina, escuta a voz da razão. Sarch vai com certeza deslocar-ti os braços.
- Ele tem um queixo de ferro - concordou Lucy. - Bem, então que tal Dusty Ben?
- Não. o Ben não. O cavalo mais fiel que eu sempre tive. Não é justo partilhá-lo, nem mesmo contigo.
- O pai está com medo de que eu o treine e leve Ben a vencer King. Qualquer dia montarei um cavalo que irá bater o King. Então dê-me Two Faces.
- Essa não, Lucy. Não se pode confiar nela. É por isso que ela tem esse nome.
- Então, Buckles.
- Lucy, não podes sentir-te satisfeita e feliz com os teus cavalos? Tens uma dúzia deles. Podes ter os que quiseres. Buckles não é seguro para montares.
Bostil era sem dúvida um homem generoso e o mais amável dos pais. A prova da sua estranha obsessão por cavalos, estava no facto de ele nem sequer ver que Lucy estava
a brincar com ele.
- Eu adorava ter a Plume - disse Lucy.
- Bem. rapariga eu... eu pensava que tu não gostavas da Plume - admirou-se ele.
- E não... a mula Derrubou-me uma vez. Nunca lho perdoei. Oh,; pai!, estava só a brincar. Eu sei que o pai não abdicaria de nenhum dos seus corredores. Não conseguia.
- Lucy. tens razão - disse Bostil, suspirando aliviado.
- Aposto que se Cordts me raptar e pedir como resgate King, ele já tem ameaçado, o pai deixa-me lá ficar.
- Lucy, isso já não tem piada.

12

- Querido pai, guarda os teus velhos cavalos. Mas lembra-te de que sou tua filha. Também sei amar um cavalo. Ah, se algum dia tiver um de que goste! Um selvagem,
um garanhão do deserto, árabe puro e treinado por um índio. Se algum dia o consigo, pai, tem cuidado, pois fugirei de Sarch e Ben e baterei o teu King.

A aldeola do rancho de Bostil possuía uma situação singular que, considerada a natureza dessa região, não era anormal. Situava-se por baixo de uma protectora e vermelha
falésia, que apenas Lucy Bostil se dava ao trabalho de escalar. Os seus escassos habitantes eram na sua maioria prósperos. Mais ou menos uma Vez por mês um grande
e tosco barco atravessava o rio, transportando cavalos, gado e ovelhas. E estava na altura de ele aparecer, pois o rio era inavegável durante semanas, e às vezes
até durante meses.
O velho Brackton, homem do oeste muito exprimentado, que possuía a única loja ali existente, veio ao encontro de um barco recém-chegado. O vagão era apenas de uma
roda hidráulica traseira, mas o condutor tínhà-lhe posto três rodas e um timão. Os cavalos transpirados, sujos e fatigados, o vagão enodoado e a enorme trapalhada
poeirenta em que a mercadoria se havia transformado davam unta ideia bem clara do que tinha sido à viagem.
- Olá. Red Wilson, chegaste bem atrasado - saudou o velho Brackton.
- Sim. E deixei uma roda e parte da mercadoria pelo caminho - respondeu Red.
Alguns vaqueiros que descansavam na sombra saudaram Wilson e perguntaram-lhe por novidades. O timoneiro replicou que a viagem fora seca, os poços de água estavam
secos e que ele estava seco.
- Diz, Van, quando começam as corridas? - perguntou alguém
passado um tempo.
- Bostil diz que daqui a umas semanas, logo que saiba alguma coisa dos índios. Está a planear ter oitocentos índios aqui, nas maiores e melhores corridas realizadas
nesta zona.
- Vais montar de novo King?
- Acho que sim. Mas Bostil tem andado a chatear-me porque estou mais pesado - explicou o vaqueiro.
- talvez precises de treinar um bocado, Vàn. Alguém me disse que o Blue Roan de Creech participava em força este ano.
- Bill, põe essa cabeça à funcionar - replicou Van. - Não venci eu no ano passado todos os cavalos de Creech, sem que King se esforçasse?
- Não, se bem me recordo não venceste. Blue Roán não correu. Então começaram todos a discutir, amigavelmente, mas todos
convictos das Suas opiniões. A opinião geral era de que o cavalo de Créech tinha hipóteses, dependendo da sorte e das circunstâncias. Nesse momento olharam e viram
Lucy Bostil que se aproximava.

13


Lucy sentia-se completamente à vontade entre eles, e os olhares tímidos dos vaqueiros, especialmente os de Van, eram reveladores. Ela saudou-os com um radiante sorriso
e ao ver Brackton explodiu
- Oh, Sr. Brackton, o vagão já chegou, e a minha caixa veio? Hoje é o meu aniversário.
- Chegou, sim, Lucy, e muitos parabéns - replicou. - Mas é demasiado pesada para ti. Eu mando-ta para cima. Ou talvez algum dos rapazes.
Cinco vaqueiros logo ofereceram os seus préstimos ao mesmo tempo. Por fim, Van carregou a caixa aos ombros e então seguiram. A conversa reatou-se bem-humorada e
foi interrompida por uma exclamação de un dos homens.
- Vejam. Diabos me levem se não é um índio nu que se aproxima. Os vaqueiros apressaram-se a olhar o aparente selvagem despido que se aproximava apressadamente.
- Atira-lhe, Bill - disse outro vaqueiro. - Miss Lucy pode estar a ver. Não, já está fora de vista. Mas talvez outra mulher ande por aí.
- Espera. Bill - chamou Macomber. - Nunca se viu um índio correr assim.
- Sem dúvida que a cara dele é branca, mas o corpo é vermelho. A estranha figura aproximava-se.
- Diabos me levem se não é Joel Creech.
- Endoideceu pela certa.
- Mas não é ele um selvagem? Espuma pela boca como um cavalo ferido!
O jovem Joel Creech corria agora rua abaixo em direcção a casa. Viu o grupo de curiosos e parou. A sua face estava congestionada pela dor e pela fúria. O seu corpo
todo, até as suas mãos, estavam cobertos por uma espessa camada de lama argilosa completamente seca.
- Valha-me Deus, rapazes - gritou com os olhos retorcidos -, tirem esta lama de cima de mim. Eu estou a morrer!

Nessa noite, depois do jantar, Bostil pulava na sala grande, sufocado pelo riso.
- Agora, é que a fizeste Lucy Bostil - gritou.
- Joel - murmurou Lucy, que tinha a consciência pesada.
- Lucy, nunca ouvi nada semelhante. Joel é mais esperto do que nós julgávamos, mas também é mais maluco. Ele não pôde ou não quis esperar pelo pôr do Sol. Assim
espolinhou-se num lamaçal de argila e cobriu-se com uma espessa camada de lama. Tu sabes, argila. Então correu para casa. Mas não imaginou que a lama ia secar, e
secou, e ficou mais dura do que pedra. Isto deve ter doído mais do que queimaduras de sol. Esta tarde apareceu na estrada a correr e a gritar que estava a morrer.
Os rapazes iam tendo um ataque. Talvez não se tenham esforçado a limpá-lo.

14

O facto é que nem em muitas horas conseguiram tirar-lhe a lama. Lavaram-no, esfregaram-no, escovaram-no, enquanto ele gritava e praguejava. Finalmente lá o descascaram,
com pele e tudo, de certeza. Ele estava em carne viva, e dizem eles que era o sujeito mais furioso que algum dia apareceu por aqui.
Lucy lutava entre o medo e o riso.
- Oh, oh. pai, que irá ele fazer?
- Só Deus sabe. Isso preocupa-me um bocado. Porque ele não disse uma única palavra acerca de lhe terem tirado a roupa, ou da razão por que se cobriu de lama. É claro
que não falei. Só nós é que sabemos.
- Pai. ele vai-me fazer alguma coisa horrível - gritou Lucy.


CAPÍTULO III

A LOUCURA DE JOEL CREECH


Os dias passavam vagarosos no rancho de Bostil. Mas excepto no Inverno e durante as tempestades de areia, o tempo passava agradavelmente. Lucy montava todos os dias,
umas vezes com Van, outras sozinha. Não ficava muito entusiasmada em montar com Van - porque ele estava apaixonado por ela e porque não o conseguia ultrapassar quando
ele montava King. Eles estavam a treinar os cavalos de Bostil para as corridas antecipadas.
A última palavra chegada dos Utes e Navajos, era que tinham aceite o convite de Bostil e viriam em força, o que significava, segundo Holley e os outros vaqueiros,
que os índios seriam mais de oitocentos.
No dia em que recebeu notícias dos índios, Bostil mandou chamar Brackton, Williams, Muncie e Creech, para virem de noite a sua casa. Estes homens juntamente com
Bostil formavam havia anos uma espécie de clube, e isto deu bastante nas vistas, pois agora Bostil já não era amigo de Creech, mas como sempre fora honesto não permitia
que a sua animosidade o influenciasse. Holley, o vaqueiro veterano, era o sexto elemento deste clube.
Bostil colocou um pedaço de tronco de cedro a arder na vasta lareira de pedra, pois as primeiras noites de Primavera no deserto eram frias.
Brackton foi o último a chegar:
- John. acho que não vais gostar daquilo que te vou contar, principalmente nesta noite - afirmou com seriedade.
- Seu velho trapaceiro. Eu não poderia gostar de qualquer maneira - retorquiu Bostil. - Que é?
- Adivinha a quem acabei agora mesmo de vender uísque?

15

- Não faço a mínima ideia - respondeu Bostil, como se já tivesse a certeza.
- A Cordts. A Cordts e a quatro dos seus homens. Dois deles não os conhecia. Os outros eram Hutchinson e... Dick Sears.
- Dick Sears! - exclamou Bostil. Muncie e Williams fizeram eco. Holley pareceu subitamente interessado. Só Creech não mostrou qualquer surpresa.
- Mas Sears morreu - acrescentou Bostil.
- Tinha morrido, isso pensávamos nós - replicou Brackton, soltando uma crua gargalhada. - Mas está outra vez vivo. Contou-me que passou estes dois anos nos campos
de ouro. Disse que o trabalho era demasiado pesado, de maneira que regressou. E ria ao dizer isto, o demónio. Aposto que estava a pensar naquele vagão que me roubou
antes de se pôr a andar.
- Meu Deus! Cordts e Sears estão cá - explodiu Bostil, começando a caminhar pela sala.
- Não. já se foram embora - disse Brackton.
- Acalme-se, chefe, e sente-se - aconselhou Holley. - O King está bem seguro, assim como todos os outros. Eu ponho as mãos por aquele curral de troncos e arame,
se ele e os seus homens aparecerem de noite. Eles detestam trabalhar. E depois Farlane e os outros rapazes estão lá.
Isto convenceu Bostil, que se tornou a sentar.
- O Cordts disse alguma coisa? - perguntou.
- Claro. Ele estava falador e amigável. Entrou ao anoitecer. Comprou dois grandes caixotes de mantimentos e algum material de couro e. claro, munições e algum uísque.
Tinha estado no norte de Durangú e trazia notícias. Lá fala-se muito na abertura de uma linha de caminho-de-ferro. que irá ligar o Este e o Oeste, e que vai ser
começada qualquer dia.
- Boa ideia essa para o nosso Oeste - concordou Bostil.
- Se algum dia essa linha se constrói, todos nós ficaremos ricos - continuou Brackton.
- Então Cordts disse que a água e a vegetação se estavam a extinguir, o mesmo que Red Wilson já nos tinha dito na semana passada. Finalmente, perguntou: "Como está
o meu amigo Bostil?" Eu disse-lhe que estavas bem. Ele então ficou pensativo e eu vi logo o que era. "Como está King?" "Em forma", disse-lhe eu, "em forma." "Quando
começam as corridas?" Eu disse-lhe que ainda não tínhamos combinado a data, mas que seria em breve... dentro de um mês ou dois. "Brackton", disse ele de repente,
"Bostil puxará da arma se me vir?" "Parece-me bem que sim", disse-lhe eu. "Bem, não fico propriamente satisfeito em saber isso. Ouvi dizer que desta vez o cavalo
de Creech vai correr com o King. É verdade?" "Parece que este ano isso é certo. Tenho a palavra de Creech e de Bostil acerca disso." Cordts pôs as mãos no meu ombro.
Deviam ter visto os olhos dele.

16

"Eu quero ver essa corrida. Eu vou vê-la." "Bem", disse eu, "tens de deixar de ser... tens de mudar de profissão." Então Cordts jurou não fazer nada. nem deixar
nenhum dos seus homens provocar alguma confusão até ao fim da corrida se o deixasses assistir. Uma luz iluminou o rosto de Bostil.
- Eu sei o que Cordts sente.
- Bem. é um negócio meio esquisito - continuou Brackton. - Há muito tempo que querias apanhar Cordts quando o visses. Todos nós sabemos isso.
- Sim. e hei-de matá-lo. - A boca de Bostil abriu-se e torcendo-se estranhamente nos cantos fechou-se numa linha tensa e dura.
- Bostil. é uma maneira fácil de pelo menos conseguir um pouco de honestidade da parte de Cordts. Uma recusa poderia enfurecê-lo. Ao fim e ao cabo Cordts não é tão
mau como isso.
- Eu vou deixá-lo vir- replicou Bostil, respirando pesadamente. - Mas vai custar-me vê-lo e lembrar-me de como ele me roubou e do que me tem ameaçado. E não vou
deixá-lo vir subornar-me com umas escassas semanas de honestidade. Faço isso só por uma razão. Porque sei quanto ele gosta do King. como ele o deseja ver correr
nesse dia. É por essa razão.
- Bostil. se Cordts gosta assim tanto de King vai ter um desgosto - disse Creech, numa voz alegre.
Bostil deixou cair as botas pesadamente e o seu olhar incendiou-se. Os outros riram-se e Brackton interpôs apressadamente:
- Um momento. Não vamos permitir aqui frases dessas. Agora, Bostil. está combinado, hem? Vais deixar o Cordts vir.
- Com muito gosto - respondeu Bostil.
- Bom. E agora é melhor passarmos ao assunto desta nossa reunião. Sentaram-se em volta da mesa, sobre a qual Bostil colocara um velho
e manchado calendário "para marcar a data", disse ele, com animação, e então acertar os detalhes. Estamos a 30 de Abril. Três dias, a começar, vá lá, a 1 de Junho.
Dias 1, 2 e 3 de Junho. Que tal esta data para as corridas?"
Toda a gente concordou, e Bostil anotou a data cuidadosamente. Então passaram aos detalhes. Os preços e os prémios que eram doados por Bostil e Muncie, os membros
mais ricos, ficaram assentes. As velhas regras foram também aceites. Bostil argumentou acerca de um certo peso para os cavaleiros, mas os outros rejeitaram esta
sugestão.
Quando chegou a vez dos detalhes para a grande corrida entre os cavalos de primeira classe, tornou-se mais difícil chegar a um acordo.
Muitos pontos tiveram de ser votados. Muncie e Williams possuíam ambos cavalos leves e rápidos concorrentes a esta corrida, Holley tinha um, Creech dois, iriam aparecer
certamente alguns índios com cavalos rápidos e Bostil tinha King e mais outros quatro para escolher.

17

Bostil lutava obstinadamente por uma corrida mais prolongada. Os votos foram contra Bostil, para sua grande contrariedade, e a grande corrida ficou estabelecida
em duas milhas.
- Mas duas milhas. Duas milhas - continuava repetindo. - É vossa distância. E não é justo para King.
Os convidados, à excepção de Creech, argumentavam com ele, explicando, dando razões, mostrando-lhe o que era mais justo para todos. Bostil finalmente aquiesceu,
mas não estava nada contente.
Quando os homens estavam para partir, Bostil chamou Creech para a sala de estar.
- Quanto queres pelo cavalo malhado? - perguntou suavemente?
- Bostil, já não está discutido e arrumado esse assunto? - perguntou Creech com um depreciativo gesto de mãos.
- Tu precisas de dinheiro e de cavalos, não precisas? - perguntou Bostil com brutalidade.
- Só Deus sabe que sim - respondeu Creech.
- Bem, aqui tens a tua chance. Dou-te quinhentos em ouro e Sarchedon como complemento.
- Não - respondeu Creech.
- Aumento para mil e dou-te Plume e Sarch - disparou Bostil.
- Não. - Creech tornara-se pálido e engolia em seco.
- Dois mil e Dusty Ben juntamente com os outros?
Isto era uma oferta nunca vista e nunca feita por um cavalo. Creech viu que Bostil estava desesperado. Era uma tentação quase sobre-humana. Bostil não deu tempo
a Creech para responder.
- Vinte e cinco mil e Two Faces juntamente com os outros.
- Meu Deus, Bostil!, pára com isso. Eu não posso desfazer-me de Blue Roan. És rico e não tens coração. Isso sempre o soube. Pelo menos para mim nunca o tiveste desde
que tenho os dois corredores. Não te pedi eu. algum tempo atrás, para me emprestares algum dinheiro para pagar uma dívida? E tu não me emprestavas a menos que te
vendesse os cavalos. E tive de perder as minhas ovelhas. Agora sou um homem pobre, ficando cada vez mais pobre. Mas não venderei nem trocarei Blue Roan, nem por
tudo o que tu tens. - Creech ergueu o punho firmemente: - E por Deus, hei-de ganhar esta corrida!

Durante essa semana Lucy ouviu falar muita coisa acerca de Joel Creech e algumas coisas eram inquietantes.
Um vaqueiro não só encontrara as roupas de Joel no caminho, como reconhecera também o rasto do cavalo que Lucy montara, o que logo relacionou com a singular descoberta.
Ligando isso à aparição de Joel na aldeia revestido de uma espessa camada de lama, os vaqueiros quase adivinharam toda a verdade. Para eles a partida era óptima.
Chegou aos ouvidos de Lucy que Joel começara a falar e a agir de um modo estranho.

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Ela descobriu que o vaqueiro Van esmurrara Joel, na loja de Brackton, e puxara da sua arma. Van riu do rumor, e Brackton não lhe deu qualquer explicação. Finalmente,
quando Muncie despediu Joel, que de vez em quando trabalhava para ele, Lucy apercebeu-se de que qualquer coisa estava errada e de que a culpada era ela.
Começou a ficar preocupada, ansiosa e arrependida, mas decidiu-se a investigar o que estava a acontecer. Todos os dias, quando cavalgava na planície, esperava encontrá-lo,
ou pelo menos avistá-lo em qualquer parte, no entanto os dias passavam e dele não havia nenhum sinal.
Numa tarde, ao ver alguns índios que levavam um rebanho de ovelhas pelo trilho do rio, e agindo sob um impulso, virou o cavalo na sua direcção.
Lucy raras vezes descia até ao rio. Sempre sentira medo da ravina sombria e receava as águas murmurantes do rio. Mas nesta tarde seguira em frente na esperança de
encontrar Joel.
As ovelhas haviam levantado uma nuvem de pó na areia, onde o caminho começava a descida, e Lucy esperou que se afastassem um pouco. A nuvem de pó pairava sobre a
ravina e Lucy teve de forçar Sarchedon a atravessá-la.
A ravina, com as suas paredes de areia argilosa, transformava-se em penhasco e acabava com algumas plantas verdes. A estrada continuava em pedra sólida. Saiu por
uma das ramificações mais baixas da ravina até chegar a uma clareira avermelhada, com o rio ainda a uns mil pés mais abaixo e os penhascos em cima pairando sobre
a sua cabeça. A estrada continuava nesta superfície, onde para a esquerda tudo era aberto, através de fendas e paredes pontiagudas. O rio parecia uma serpente, tornando-se
empolado uma milha mais acima. Era uma corrente selvagem, veloz e poeirenta. Um grande banco de areia erguia-se na margem. Atrás, pela boca de uma ravina, podia
ver-se uma pequena plantação de algodão e salgueiros que assinalavam a casa de Creech.
Lucy não podia ver a margem mais próxima, pois estava-lhe quase directamente por debaixo. Aliás, neste estreito caminho, e montando um cavalo tão nervoso, não
estava com muita disposição para contemplar o panorama. Apressou Sarchedon por debaixo de rochas e penhascos, para onde a margem se inclinava. Aqui havia um bocado
de areia, com alguns salgueiros plantados numa saliência na base do gigantesco penhasco.
Lucy cavalgou até à margem onde os índios estavam a meter as ovelhas numa enorme e rude embarcação. Os seus balidos abafavam o barulho do rio. Os barqueiros de Bostil,
Shugrue e Somers, tinham os joelhos cobertos com areia movediça e faziam enérgicos esforços, quer para manter os pés livres, quer para passarem as ovelhas.
Agora que já todo o rebanho se encontrava a bordo, seguiram-se os índios e então os barqueiros fizeram deslizar a pesada barcaça para fora da areia. Puxaram-na,
corrente acima, cada qual com seu remo. Ao longo da costa era possível remar, pois as correntes eram fracas.

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O método utilizado para atravessar consistia em remar pela margem até a um cabo de rocha, aí apanhar a corrente e enquanto desciam remavam energicamente até atingirem
a margem oposta.
Lucy observava a lenta e trabalhosa luta dos barqueiros com os pesados remos, até que de repente se lembrou da finalidade do seu passeio. Aparentemente estava sozinha
naquela margem do rio. Contudo, no lado oposto estavam dois homens, nos quais Lucy reconheceu Joel Creech e o pai. Um segundo olhar mostrou-lhe ainda alguns índios
com burros, que esperavam o barco.
Joel Creech saltou para um bote e empurrou-o. O homem mais idoso parecia estar a tentar demover o seu filho de abandonar aquela margem. Mas Joel começou a remar,
mantendo-se perto da costa. Lucy olhou-o. Sem dúvida que ele a vira e vinha agora ao seu encontro.
Ela viu a barcaça a desaparecer no horizonte e ao mesmo tempo Joel meter-se na corrente. Mas enquanto o outro barco se dirigia devagar para a outra margem, este
atravessava o rio rapidamente. Joel remou através da corrente até ao banco de areia. Então saltou para a areia. Estava sem chapéu e descalço.
- Andas à minha procura? - berrou.
Lucy acenou-lhe com a mão para que subisse.
Então ele aproximou-se. Era um jovem alto e esguio, de ombros largos e pernas arqueadas, de andar muito a cavalo, a sua face era sardenta e pálida, tinha uma pequena
barba frisada, uma boca e um queixo pequenos, uns olhos notáveis pela sua pequenez e por serem de cores diferentes, pois um era cinzento e o outro castanho. A irregularidade
das suas feições lembrava alguém atingido por um coice de cavalo.
Creech começou a subir de uma maneira tão ansiosa e selvagem, qui levou Lucy a sentir pena dele. Ele parecia não se lembrar que o cavalo tinha uma grande antipatia
por ele.
- Tem cuidado, Joel - disse ela dando um puxão na cabeça do cavalo. Sarchedon ergueu-se com um relincho e baixou-se batendo com os cascos na areia. Rápida como
um índio, Lucy desceu da sela.
- Empresta-me o teu chicote - disse Joel, mostrando os dentes como um lobo.
- Não. não te deixo bater em Sarch. Bateste-lhe uma vez e ele nunca se esqueceu - replicou Lucy. Soltou o arreio e conduziu Joel para um enorme tronco velho, meio
enterrado na areia. Então ela sentou-se. mas Joel continuou de pé.
- Que é que tu queres? - perguntou Joel.
- Tenho ouvido muita coisa, Joel - respondeu Lucy, tentando pensar no que realmente lhe queria dizer.
- Aposto que sim - disse Joel desdenhosamente, sentando-se no tronco e começando a escavar buracos na areia com os seus pés descalços.

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Então Lucy contou-lhe cautelosamente alguns dos rumores que tinha ouvido.
- Tudo isso que acabaste de dizer não é nada comparado com o que aconteceu - replicou ele. - Todos os vaqueiros fazem troça de mim e fazem-me sentir infeliz.
- Mas, Joel. tu não deves ser tão sensível - disse Lucy. - Afinal a piada era tua. Por que não aceitaste isso como um homem?
- Mas eles sabiam que tu me tinhas roubado a roupa - protestou ele.
- Mesmo que soubessem. Isso não tem importância nenhuma. Se não tivesses levado isso tanto a peito já te teriam deixado em paz.
- Talvez eu tivesse aguentado isso. Mas eles troçam e dizem que fico apatetado por tua causa. - Joel tinha a voz rouca. Não havia dúvida que estava profundamente
magoado.
- Por que andou Van à bulha contigo? - perguntou ela. Joel abanou a cabeça.
- Não te vou dizer.
- Tu disseste alguma coisa acerca de mim? - Lucy não resistia em satisfazer a sua curiosidade que a excitava. - Deve ter sido alguma coisa grave senão Van não te
teria batido.
- Ele bateu-me. acertou-me em cheio - disse Joel, fervorosamente.
- E tu apontaste-lhe a arma?
- Apontei. E feito burro não me levantei primeiro. Então ele deu-me um pontapé. O vale nunca será grande de mais para nós os dois.
- Não digas tolices, Joel. talvez mereças isso tudo. Tu dizes coisas... coisas muito grosseiras.
- Eu só disse que me havia de vingar de ti - acrescentou Joel.
- Como?
- Eu jurei que te havia de apanhar, e roubar-te a roupa, e assim terias de regressar a casa nua.
- Mas, Joel, eu não vou nadar em poços de água - protestou Lucy. meio divertida, meio aborrecida. - Foi só isso que disseste para provocar Van?
- Juro que foi tudo, Lucy.
- Lamento muito. Joel. Se ao menos tivesses tido o senso suficiente para só regressares ao pôr do Sol. Mas não adianta lamentar o que está feito. Agora se tu fizeres
a tua parte, eu faço a minha. Eu digo aos rapazes que fui a culpada. Convenço-os a deixarem-te sossegado. Vou ter com Muncie...
- Não. tu não vais pedir piedade para mim - desabafou Joel. Lucy ficou surpreendida por ver que ele tinha orgulho.
- Joel. eu faço que não pareça...
- Tu não vais falar uma palavra a meu respeito a ninguém - continuou ele, com o sangue a colorir-lhe a cara. - Lucy Bostil. nunca esquecerei

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os ditos e mexericos que têm havido a meu respeito. Eu já não sirvo para nada aqui na planície. Para nada. E é tudo culpa tua.
- Oh, Joel, que hei-de fazer?
- Acho que só há uma maneira para me reabilitares - replicou ele, empalidecendo.
- Qual? - perguntou Lucy, ansiosa.
- Casares comigo. Então mostrarei a todos eles. Isso reabilitar-me-á. Então poderei trabalhar e aguentarei. É só isso, Lucy Bostil.
- Mas, Joel, não posso casar contigo, mesmo que seja a culpada da tua ruína - disse Lucy.
- Porquê?
- Porque eu não te amo.
- Acho que isso não faz grande diferença, se não amares ninguém. Lucy olhou para ele determinada. Ele começou a tremer e os seus
olhos tomaram um brilho selvagem. Ela levantou-se do tronco.
- Tu amas alguém? - perguntou ele com paixão.
- Não é da tua conta - retorquiu-lhe Lucy.
- É Van - disse ele, roucamente.
- Joel, és um tolo.
- Assim o dizem. E levaram o meu velhote a acreditá-lo também. Talvez seja, mas hei-de matar Van.
- Não. não, Joel. Que estás tu a dizer? Eu não amo Van. Eu não gosto mais dele do que de qualquer outro vaqueiro... ou... ou de ti.
- Isso é uma mentira, Lucy Bostil.
- Como te atreves a chamar-me mentirosa? Tento reparar a minha tolice e tu... tu... insultas-me?!
- Falas bem... mas falar não chega. Arruinaste-me. Casas comigo?
- Não. não caso. - Então, virando-lhe as costas, afastou-se apressadamente.
Ele correu atrás dela e agarrou-a com as suas rudes mãos.
- Deixa-me ir - gritou ela, ficando completamente imóvel. A violenta pressão dos seus dedos encheu-a de cólera.
Joel não fez caso da sua ordem. Ele forçava-a a recuar, falando incoerentemente. Lucy olhou de relance para o seu rosto e o medo veio juntar-se à cólera que ela
sentia.
- Joel. tu não estás no teu juízo - gritou ela, começando a tentar libertar-se. Então seguiu-se uma luta rápida e feroz, Joel não conseguia manter Lucy presa, mas
pusera-lhe a blusa em farrapos. Ela libertou-se e ele atirou-se de novo a ela. Com toda a força chicoteou-o na face com o seu pesado chicote de cabedal. Isto amansou-o
e quase o fez cair.
Lucy correu para Sarchedon. Num segundo, subiu para a sela. Joel corria na sua direcção.
- Pára - gritou Lucy ameaçadoramente. - Eu deito-te abaixo.

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O garanhão preto relinchou ao toque da espora e, erguendo as patas dianteiras, preparou-se para partir.
Creech desviou-se para o lado. O seu rosto estava lívido, excepto na parte onde corria o sangue. Os seus joelhos pareciam tremer, e falava com dificuldade.
- Só por isto - murmurou roucamente - eu... hei-de apanhar-te, despir-te... atar-te a um tronco, e arrastar-te-ei toda nua pela aldeia.
Lucy reconheceu a total futilidade de todas as suas boas intenções. Pela segunda vez, esporeou Sarchedon. Este partiu, passou por Creech e meteu-se a caminho. Foi
tudo o que Lucy pôde fazer para lhe travar o passo na escarpada subida.


CAPÍTULO IV

O CAÇADOR DE CAVALOS


Três caçadores de cavalos selvagens acamparam uma noite ao pé de um pequeno ribeiro, a quinhentas milhas do rancho de Bostil.
Estes homens possuíam um equipamento bastante pobre, à excepção dos seus cavalos. Eram homens ainda jovens, duros de constituição, magros e moldados pela vida a
cavalo, bronzeados como índios, de rosto sereno e olhos perspicazes. Dois deles pareciam estar muito cansados, ao começarem a montar o acampamento.
Rapidamente a noite caiu, e era já noite cerrada quando os caçadores terminaram a sua refeição. A fogueira ardia agora quase em brasa. Um deles, arrastando alguns
ramos de cedro já seco, avivou o lume.
- Eu acho que uma cachimbada me iria ajudar a decidir - disse um dos caçadores mais cansados.
- Bem, Bill - replicou o outro secamente -, tu já te decidiste, pois doutra maneira não fumarias.
- Porquê?
- Porque já não há tabaco nem para três cachimbos.
- Isso é um problema. Anda, Lin, vem fumar o último cachimbo connosco.
O mais alto de todos, aquele que trouxera a lenha, estacou à luz da fogueira. Era um cavaleiro nato, ágil, poderoso e forte.
- Claro que também fumo - replicou.
Aceitou o cachimbo que lhe ofereciam e, sentando-se em frente da fogueira, preparou-se para gozar aquilo que os seus companheiros achavam digno de decidir.

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- Então esta cachimbada quer dizer que vocês estão decididos a voltar para trás? - inquiriu Lin, olhando penetrantemente a brilhante chama da fogueira.
- Sim, nós vamos regressar. E que alívio sinto, meu Deus! - respondeu um deles.
- Nós já andámos muito, Lin, e por tua causa - replicou o outro. Lin aspirou o seu cachimbo lentamente, e expeliu o fumo, relutante.
- Continuemos - disse calmamente.
- Não. Já estou farto desta perseguição àquele maldito cavalo selvagem - resumiu Bill.
O outro soprou vagarosamente as mãos e dirigiu um olhar queixoso ao que dava pelo nome de Lin.
- Já nos afastámos duzentas milhas - disse ele. - Só nos resta um pouco de farinha. Não há café. Só temos um pouco de sal. Todos os cavalos, à excepção do teu Nagger,
estão estourados. Já estamos em terras estranhas. E tu sabes o que dizem disto para o sul. São só ravinas, e algures por aí há aquela ravina tão conhecida e temida
que a nossa gente nunca viu. Mas houve-se falar. Uma terrível zona montanhosa.
Lin, silencioso, parecia impressionado.
Bill levantou uma esguia, forte e bronzeada mão e esboçou um gesto sugestivo.
- Nunca conseguiremos apanhar o Wild Fire.
- Bill tem toda a razão e eu também - continuou o outro. - Lin, nós seguimos aquele garanhão selvagem há seis semanas. Tentámos todos os truques que sabemos. Ele
é demasiado esperto para nós. Ele é um cavalo. Perseguindo Wild Fire, acabaremos por nunca o apanhar. E agora desisti e estou contente por o ter feito.
Seguiu-se outro pequeno silêncio, que Bill cortou:
- Lin. custa-me muito desistir. E não nego que durante muito tempo tive esperanças de apanhar Wild Fire. É o melhor cavalo que já vi em toda a minha vida. Eu acho
que nenhum homem, a não ser um árabe, viu um cavalo assim tão bom. Mas agora não o apanhamos. Temos de regressar.
- Rapazes, acho que vou seguir o rasto de Wild Fire - disse Lin, no mesmo tom calmo.
- Lin Slone, ficaste completamente maluco com aquele cavalo?
- Assim parece - respondeu Slone. O barulho da sua garganta a engolir era perfeitamente audível.
Bill olhou o seu aliado como que a confirmar qualquer acordo existente entre eles. Para eles a situação mudara subtilmente. Durante semanas tinham sido três caçadores
de cavalos selvagens envolvidos numa árdua luta para apanhar um valioso garanhão. Nem sequer se conseguiram aproximar dele. Tinham chegado ao limite das suas forças
e dos seus mantimentos, e era tempo de regressarem. Mas Slone alimentara uma estranha e rara obsessão pelo cavalo - uma paixão que, se não compartilhada,

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era compreendida por qualquer vaqueiro. E eles sabiam que ou ele apanhava Wild Fire ou morreria a tentar fazê-lo.
- Eu digo-te, Lin - disse Bill -, o teu cavalo Nagger está tão fresco como quando começámos. Tu tens ferraduras a mais para ele?
- Só me restam três - replicou Lin, sombriamente.
- Bem. isso é o suficiente. Podes manter o Nagger ferrado. E pode ser que esse garanhão vermelho se magoe nas patas e fique coxo. Assim terias uma chance.
- Mas Wild Fire mantém-se sempre nos vales, em terreno macio - disse Slone.
- Não interessa. Ele está a sair da região, e irá encontrar arenito mais tarde ou mais cedo. Então, caramba, talvez fique com os cascos desajustados.
- Vocês acham que ele vai sair da região? - perguntou Slone, ansioso.
- Claro que vai - respondeu Bill. - Não é o primeiro que eu persigo para fora da cordilheira de Sevier. E eu sei. É um garanhão que procura novas terras quando o
perseguem muito.
- Sim, Lin, ele vai certamente sair daqui - acrescentou o outro camarada. - Porque ele tem andado a direito há muitos dias. Aposto que ele nos vê muitas das vezes.
Wild Fire é tão esperto como qualquer homem. Ele nasceu selvagem, e o seu ser nasceu selvagem, aí tens. Ele tem morto cavalos por toda a cordilheira de Sevier. Um
garanhão selvagem, que é um assassino. Poderá ser domado?
- Eu hei-de domá-lo - disse Lin ameaçadoramente. - Apanhá-lo é que é pior. Eu tenho paciência para vergar um cavalo. Mas a paciência não consegue apanhar nenhum
raio de luz.
- Não. tens razão - replicou Bill. - Com um bocado de sorte tu apanha-lo... talvez. Se ele se magoar nas patas, ou se o apanhares num penhasco estreito, ou levá-lo
para um sítio donde ele não te possa escapar. Isso pode acontecer. E então com Nagger terás hipóteses. Já alguma vez conseguiste cansar esse cavalo?
- Nunca. Ele pode correr cinquenta milhas, ou mais.
- Lin. se Wild Fire te conseguir fugir, terá de voar. Tu tens os melhores olhos para pistas de todos os vaqueiros de Utá.
Slone aceitou o cumprimento com um fugaz e duvidoso sorriso na sua face grave. Não respondeu e os seus companheiros não disseram mais nada. Viraram-se de costas
para o fogo. Slone pôs-lhe mais lenha, pois o vento era frio e cortante, e então deitou-se em cima de uma pele de cabra e cobriu-se com o cobertor da sela. Depressa
estavam todos a dormir.
Os irmãos Stewart eram caçadores de cavalos com fins comerciais. Mas Lin Slone, nunca vendera ou trocara um cavalo que tivesse capturado. A excitação do jogo, a
fascinação do deserto e o amor aos cavalos é que o mantinham nesta pouco rendosa actividade. O seu tipo era raro nas montanhas.

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Estes eram os primeiros tempos da povoação de Utá, e apenas alguns dos mais duros e aventurosos pioneiros haviam penetrado na parte sul do deserto desta vasta zona
montanhosa. E com eles aventuraram-se alguns vaqueiros ousados, dos quais Slone e os Stewarts faziam parte.
Lin Slone acordou na manhã seguinte, à hora do costume desenroscou-se do seu cobertor. Mas não se levantou suficientemente cedo para se despedir dos Stewarts. Estes
já tinham partido.
Haviam-lhe deixado mais do que a sua parte dos mantimentos, e foi com certeza por isso que haviam desaparecido antes do amanhecer. Eles conheciam-no o bastante
para saberem que não teria aceite nada.
Slone olhou na direcção oeste.
- Adeus - disse ele, como se falasse com algo mais do que simples companheiros. - Acho que tão cedo não verei a vila de Sevier, talvez nunca - continuou, falando-consigo
mesmo.
Slone voltou a sua atenção para o saco de mantimentos. Os Stewarts tinham dividido igualmente a farinha e o milho ressequido, e a menos que se enganasse muito, tinham-lhe
deixado a maior parte do café e o sal todo.
Então resolveu rapidamente acender uma fogueira e preparar uma refeição. A meio desta tarefa ouviu o relincho do seu cavalo.
- Bom, velho Nagger - disse ele. - Hoje não tenho de te ir procurar. Enfiando-se por entre os cedros, procurou Nagger e o cavalo que
servira para transportar os mantimentos. Nagger pastava numa pequena clareira entre as árvores, mas o cavalo dos mantimentos tinha desaparecido. Slone parecia saber
a direcção a seguir para encontrar o seu trilho, pois descobriu-a num instante. O cavalo de carga usava ferraduras, e Slone encontrou-o calmamente no meio dos cedros.
Nagger viu o seu dono, e apareceu ao seu chamamento.
Este enorme cavalo parecia ser único na sua classe, como Slone o era entre os vaqueiros. Nagger possuía várias cores, embora predominasse o preto. O seu pêlo era
desgrenhado, quase parecendo de lã, como o das ovelhas. Ele era enorme, muito magro, comprido de corpo e comprido de pernas, com a cabeça de um guerreiro.
Slone descarregou a bolsa da sela e os sacos. O último estava quase vazio. Colocou a lona nas costas do cavalo e, fazendo um pequeno embrulho com os seus escassos
mantimentos, atou-o à lona. O seu cobertor foi utilizado em Nagger como manta de sela. Dos utensílios deixados pelos Stewarts escolheu um par de pequenas caçarolas
de ferro com longas pegas. O resto deixou ficar. Nas bolsas da sua sela tinha algumas ferraduras extra, alguns pregos, balas para a sua espingarda e uma faca de
lâmina afiada.
- Não é um equipamento lá muito rico, para uma região desconhecida - murmurou. Então montou avançando pelo declive em frente ao vale e às negras e vigorosas montanhas
a sudoeste. Algumas milhas depois fez Nagger parar e, inclinando-se na sela, examinou o solo.

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A marca de um cavalo aparecia nítida na areia batida. As formas dos cascos eram largas, quase ovais, de formato perfeito e maravilhosas aos olhos de Lin Slone. Ele
observou-as longamente, depois olhou através do ponteado vale vermelho até aos acidentados e vastos degraus que levavam ao negro planalto.
Slone saltou da sela e ajoelhou-se para melhor examinar as marcas do cavalo. Alguma areia voara até à depressão, uma molhada e outra seca. Levou o seu tempo a examiná-la,
e tentou soprar ao de leve mais areia para as marcas, e compará-la com a já existente. Finalmente pôs-se de pé e dirigiu-se a Nagger.
- Esta manhã, não temos de discutir com Abe e Bill - disse com satisfação. - Wild Fire deixou esta marca ontem, antes do pôr do Sol.
Logo de seguida Slone tornou a montar levando Nagger a trote. O cavalo dos mantimentos seguia-os bem de perto, o que demonstrava que não tinha vontade nenhuma de
ficar só.
Sempre em linha recta Wild fire deixara um trilho pelo chão do vale. Ele não parara para pastar nem procurar água. Slone esperava encontrar uma nascente nos terrenos
mais baixos do vale, mas se aí houvesse alguma, Wild Fire tê-la-ia cheirado. Que Slone soubesse ele não bebia há três dias. Nagger não bebia há quarenta horas.
Slone possuía um cantil preso à sela, mas era hábito seu não beber enquanto pudesse e até que o seu cavalo matasse também a sede. Tal como os índios, Slone comia
e bebia muito pouco.
Levaram quatro horas de trote contínuo para atingirem o meio e o fundo do enorme vale. Um cruzamento de valas cortava-o no centro e estavam todas tão secas como
descoradas. Para as atravessar, Slone só tinha de seguir o trilho de Wild Fire.
Estava quente ali em baixo. O calor levantava-se, reflectido pela areia. Mas tratava-se do Sol de Março, e nada era mais agradável para Slone. O vento soprava, no
entanto, e atirava pó e areia para o cavaleiro e para a montada. A excepção de alguns lagartos, Slone não via nenhum ser vivo.
Milhas de vegetação rasteira e de erva amarela e dispersa conduziam à primeira e quase imperceptível elevação da planície naquela zona. Os cedros distantes acenavam
a Slone. Ele sentia-se impaciente, pois estava na peugada de Wild Fire. mas mesmo assim as horas passavam rapidamente.
Para Slone havia uma crescente e visível fascinação nos traços claros e bem definidos, deixados por Wild Fire. Era como se cada marca de casco lhe dissesse alguma
coisa. Já quase no fim da interminável subida, encontrou no topo da ravina marcas que mostravam onde Wild Fire havia parado e virado.
- Ah. Nagger! - gritou Slone exultante. - Olha para isto. Ele está a ficar preocupado. Ele anda a ver se nós vamos atrás dele. Mas nós continuamos fora de vista...
um dia de atraso.
Quando Slone atingiu os cedros, o Sol punha-se a oeste.

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Olhou para trás através das cinquenta milhas de vale, até aos coloridos montes e ravinas. Parecia que agora estava por cima deles, e o vento morno e o cheiro a cedro
e a zimbro davam-lhe a impressão de ter subido muito alto.
Cerca de uma milha acima erguia-se uma montanha cinzenta com ravinas e uma linha negra de cedros ao nível das suas margens. Ele pensava que deveria ser a entrada
de outras ravinas e continuou. A pista deixada por Wild Fire conduzia até à boca de uma estreita ravina de paredes altas e apertadas. Nagger assinalou a sua percepção
de água e o outro cavalo resfolegou. As marcas de Wild Fire levavam a um ponto debaixo da parede de onde brotava uma nascente. Ali havia também alguns sinais de
leões da montanha e veados, bem como de outra caça mais pequena.
Slone acampou aí. O cavalo de carga estava cansado. Mas Nagger, depois de muito beber, passeava na erva como se a jornada apenas tivesse começado. Depois de comer,
Slone pegou na sua espingarda e saiu à procura de caça. Mas parecia não haver nenhuma por perto. Encontrou várias marcas de leões e viu com apreensão que um deles
seguia o trilho de Wild Fire.
Incomodava-o um pouco estar em terra de leões. Nagger mostrava-se nervoso, o que era raro nele. Slone atou os dois cavalos com cordas e colocou-os ao pé de tufos
de erva. Então, pondo um pedaço de cedro na fogueira, deitou-se a dormir. Depois de acordar e de ter ido à nascente ficou um pouco desgostoso ao verificar que alguns
veados tinham vindo beber de manhã cedo. Era evidente que eram muitos. Uma zona de veados é sempre uma zona de leões, pois estes seguem-nos por toda a parte.
Antes que o Sol iluminasse as paredes da ravina, Slone estava já a caminho com as trouxas arrumadas. Levava os cavalos a pé. De tempos a tempos apareciam sinais
do progressivo avanço de Wild Fire. A ravina estreitava, as paredes ficavam mais pequenas e a relva aumentava. Era uma permanente subida. Slone não conseguiu encontrar
sinais de que a ravina já alguma vez tivesse sido atravessada por caçadores ou por índios.
O dia estava calmo, agradável e quente. Pelo meio da tarde, tendo chegado ao lugar onde Wild Fire seguira a trote, mudou a marcha a Nagger e pelo pôr do Sol chegou
ao local onde a montanha se transformava numa baixa ravina. E finalmente tornou a virar, para se encontrar no meio de pinheiros dispersos que se erguiam acima dos
cedros e fantásticos abetos verde-escuros que se erguiam acima dos pinheiros. Aqui havia tufos de estepe, fresca e viçosa, e erva comprida e descorada. Era a orla
da floresta.
A pista de Wild Fire continuava. Slone chegou calmamente até a um grupo de pinheiros onde encontrou os restos de um acampamento e algumas cabeças de setas. Os índios
tinham estado ali, provavelmente vindos da direcção oposta à de Slone. Isto encorajou-o, pois onde os índios podiam caçar, ele também podia. Depressa entrou numa
floresta

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onde pinheiros e cedros se adensavam. Até que chegou a uma marca pouco definida, apenas uma linha estreita e esbatida, mesmo para uns olhos experientes. Mas era
um trilho, e Wild Fire tinha seguido por ali.
Slone parou para passar a noite. O ar estava frio e a sua humidade deu-lhe a impressão de que não muito longe deveria existir neve. O orvalho era já espesso na erva.
Atou os cavalos e uma campainha em Nagger. Uma campainha poderia assustar os leões que nunca tivessem ouvido uma. Então, acendendo a fogueira, cozinhou a sua refeição.
Tinha passado muito tempo já, desde que acampara lá em cima nos pinheiros. O sopro do vento era-lhe tão agradável como música. Tinha-se aberto a perspectiva de várias
experiências agradáveis, juntamente com a emoção de perseguir Wild Fire. Ele entrava agora em terras maravilhosas e desconhecidas. A que distância o levaria esta
perseguição? Não se importava. Não tinha sono, mas mesmo que tivesse teria de esperar que os coiotes, à volta do seu acampamento, cessassem de uivar. Eles tinham
chegado perto, de maneira que podia ver as suas sombras na escuridão. Mas cansaram-se de uivar e desapareceram.


CAPÍTULO V

NA RAVINA


De manhã cedo, quando tudo é cinzento e os enormes e escuros pinheiros parecem sombras espectrais, Slone acordou com o frio. As suas mãos estavam tão tolhidas que
foi com alguma dificuldade que conseguiu acender uma fogueira. Aproximou-se das chamas para as aquecer. O ar estava cortante, claro e doce de uma fragância gelada.
A meio da sua refeição matinal já era de dia. O chão estava coberto com geada branca, que derretia debaixo dos seus pés, quando se levantou para ir buscar os cavalos.
Viu traços recentes de veados. Então voltou a buscar a espingarda. Mantendo um olhar aguçado, continuou à procura dos cavalos.
Era uma floresta aberta e alinhada. Não havia árvores caídas nem vestígios de fogueiras. Chegou a meio de uma clareira, onde Nagger e o cavalo de carga pastavam
juntamente com uma manada de veados. Eram tão mansos que ficaram a olhá-lo com curiosidade, de orelhas erguidas.
Era um verdadeiro crime matar um veado parado a observar, mas Slone não tinha carne e tinha fome e esperava-o uma longa e dura viagem. Atirou a um gamo, que saltou
em frente com um espasmo, tentando seguir a manada, mas caiu à entrada da clareira. Slone cortou-lhe uma anca,

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e então, apanhando os cavalos, voltou ao acampamento, arrumou e empacotou as suas coisas, e de novo se pôs a caminho seguindo a esbatida pista.
Slone podia ver em frente e para ambos os lados na extensão de várias milhas, e certificou-se de que o chão da floresta não era tão plano como ele supunha. Entrava
num vale e atravessava um alto e estreito desfiladeiro. Passou por ramos de zimbro, e teve de se desviar de ramos de faias que se agitavam. Os pinheiros tornavam-se
maiores e mais dispersos. Os cedros tinham já sido deixados para trás e não tornou a encontrar abetos prateados. Provavelmente esta zona era uma linha de divisão.
Havia pedaços de neve nalguns vales a norte.
Slone chegou até a um rasto deixado por um leão no trilho, provavelmente feito no dia anterior. Começou a ficar mais curioso, ao verificar que, como ele, o leão
se mantinha no rasto de Wild Fire. Uma milha mais à frente certificou-se de que o leão seguia o cavalo, e um arrepio contraiu-lhe o coração.
O Sol ergueu-se, derretendo a geada, e um sopro de ar quente, impregnado de um perfume de pinheiro, agitou as enormes árvores amareladas. Slone chegou a uma zona
onde vestígios de um acampamento e uma pilha de chifres de veado eram prova suficiente que índios tinham passado por ali a caçar. A partir daí umas pistas bem marcadas
levavam para sul e leste. Slone continuou pelo trilho de leste, no qual estavam bem patentes os sinais de Wild Fire e do leão. Foi pelo meio da manhã que as marcas
do cavalo e do leão deixaram o trilho para seguirem por um estreito traço, onde a erva crescia grossa. Slone continuou, lendo os sinais do progresso de Wild Fire
e a acção do seu perseguidor, tão bem como se os tivesse visto.
Aqui o garanhão abrira caminho até a um banco de neve, abrindo um buraco com dois pés de profundidade; então pastara um pouco por ali; as suas marcas estavam nitidamente
marcadas na terra macia. Slone sabia o que esperar quando as marcas do leão se afastaram das do cavalo, e seguiu os traços do leão. O terreno estava macio do último
degelo e Nagger enterrava-se fundo. O leão deixara uma pista clara. Aqui deslocava-se furtivamente: ali deixara muitas marcas, num ponto onde parara para se assegurar
do seu faro. Ele circulava na pista do garanhão, com uma evidente intenção de emboscada.
O fim desta lenta e cuidadosa espreita do leão que se podia ver nas marcas que deixara, acabou no cimo de um monte, onde havia rastejado para observar e esperar.
Desta elevação tinha feito um magnífico salto. Slone calculou-o em quarenta pés - mas falhara o cavalo. Ali estavam de novo as marcas de Wild Fire. lentas e curtas,
e depois profundas e vincadas, quando, levado pelo medo, saltara para fora do alcance do leão. Um segundo salto do leão, de menor alcance, e por fim uma volta abrupta
na pista de Wild Fire mostrou a futilidade dessa tentativa.

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Slone certificou-se que Wild Fire era tão perspicaz, que, à medida que pastava, se mantinha em terreno descoberto.
Wild Fire correra uma milha, abrandando depois para trote, e então voltou para o trilho que tinha abandonado. Slone acreditava na inteligência do cavalo. De qualquer
maneira, Wild Fire retomara o trilho cortando caminho para o seguir.
Aqui a floresta parecia nivelada. Pedaços de neve tornavam-se mais frequentes e maiores à medida que Slone avançava. Estes pedaços foram ganhando comprimento e
cedo se estendiam por todo o horizonte. Eram macios e tornavam a viagem difícil. Slone atravessou centenas de marcas de veados, e o caminho que seguia tornou-se
um trilho de veados.
Lá longe, numa passagem entre os pinheiros, Slone viu algo que lhe pareceu uma ravina amarela. Ficou admirado. E à medida que ia avançando, ficou com a impressão
de que a floresta se ia perdendo de vista. Então as árvores tornaram-se mais densas, cortando-lhe a vista. O caminho era difícil e teve de ajudar o seu cavalo.
O cavalo de carga tropeçava na neve macia. Cedros e pinheiros que de novo começavam a aparecer tornavam o avanço ainda mais difícil.
Slone teve a sensação de uma estranha mistura de luz, vento, espaço e vazio. Nesse momento o cavalo parou com um relincho. Slone olhou rápido. Teria ele chegado
ao fim do mundo? Uma garganta, um canyon, abria-se perante ele, de uma grandiosidade incomparável.
O seu olhar arguto, habituado às distâncias e dimensões do deserto, olhava em volta, absorvendo a realidade, antes propriamente de a compreender. Mas, num segundo
olhar mais demorado, completamente absorvido pelo que conseguia abranger, viu os gigantescos degraus da ravina e as amarelas encostas cobertas de cedros, que conduziam
a fendas tapadas com um fumo de cor púrpura, e estas levavam a um áspero mundo de pedra vermelha e brilhante, íngreme, elevado até formar uma mesa, claro e estranho
à luz da manhã, calmo e quieto como se estivesse morto.
Era isto a grande ravina, que mais parecia uma fábula de caçadores, do que realidade. Slone olhou e tornou a olhar, até se confundir com a imensidão e grandiosidade,
sentindo uma vaga tristeza com o panorama.
O trilho dos veados atravessava uma fenda na parede. Só se abrangiam alguns metros. Esta pista era transitável, embora estivesse coberta com neve. Mas o desconhecido
atrás da parede pareceu fascinar Slone, habituado como estava a trilhos de deserto. Então as visíveis marcas dos cascos de Wild Fire trouxeram-lhe de novo toda a
excitação.
- Fica-te bem este cenário, Wild Fire - murmurou Slone, desmontando.
Começou a descer, conduzindo Nagger. Logo atrás seguia o cavalo de carga. Slone manteve-se junto à parede do caminho, com medo de que os cavalos escorregassem. A
neve ao princípio era espessa e Slone não teve problemas. A brecha na rocha alargava-se para um declive

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espessamente coberto com cedros e pinheiros. Esta vegetação tornava a descida mais difícil mas atenuava o perigo para Slone.
Não houve paragens. Uma vez a caminho os cavalos não podiam parar, Slone apercebeu-se da impossibilidade de subir enquanto ali existisse neve. O trilho descia em
ziguezague. Depressa a imensa parede amarela se elevou acima da sua cabeça, mesmo a direito. A neve tornou-se mais fina e macia. Os cavalos começaram a tropeçar.
As patas resvalavam aqui e além. Por sorte o declive tornara-se menos acentuado, e Slone podia ver em baixo terreno plano. Mas algum acidente poderia ainda acontecer.
Slone mantinha-se o mais possível junto a Nagger, ajudando-o como podia. O cavalo de carga, então, escorregou, rebolou, e caiu pela encosta, até parar junto aos
cedros. Slone desceu até ele e sõltou-o.
Então o enorme Nagger começou a tropeçar. Neve e pedras rolaram com ele assim como Slone. A pequena avalanche parou então de comum acordo e Slone rebocou Nagger
até ao fim da descida.
Aqui, cedros e pinheiros cresciam suficientemente densos para formarem uma floresta. A neve foi escasseando até que desapareceu por completo. Mas o caminho continuava
mau ainda por um bocado, e os cavalos tropeçavam constantemente na terra vermelha. Esta foi-se tornando cada vez mais dura até que ficou completamente seca.
Slone passou pelos cedros até chegar a uma clareira com relva, rodeada por uma encosta verde e branca, com as paredes amarelas sobranceiras da ravina. Aqui o panorama
era restrito. Ele estava no primeiro braço da ravina. Ali estava o trilho dos veados, um caminho bem batido que se mantinha pela orla da encosta. O caminho virava
à esquerda e então subia para um braço mais elevado. Aqui havia erva e enormes tufos de pastagem, tão activamente perfumados que invadiram as narinas de Slone.
Então de novo começou a descer, desta vez para chegar a um límpido regato delineado por salgueiros.
Os cavalos beberam abundantemente e Slone refrescou-se. O sol tornara-se quente. A maior parte das vezes a vista era-lhe cortada, mas ocasionalmente chegava a sítios
onde, através de algumas aberturas, conseguia ver montanhas brilhando vermelhas à luz do Sol. Um lugar estranho de silêncio e véus de fumo lá longe. O tempo passava
rapidamente. Pelo fim da tarde começou a trepar o que poderia ser um pedaço de terra que unia a parede da ravina à sua esquerda com um grande planalto, subindo cada
vez mais à medida que ia avançando.
Ao pôr do Sol, Slone estava mais rodeado do que estivera nas horas anteriores. A encosta, nesta altura, era uma subida gradual, e depois de ter chegado a uma
nascente e aos primeiros pinheiros, decidiu parar e acampar. O cavalo de carga estava exausto.
Assim, prendeu os cavalos ao pé da erva florescente que rodeava a nascente e desempacotou as suas coisas. Quando a noite desceu, enquanto comia a sua refeição, Nagger
resfolegou assustado.

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Slone viu uma silhueta cinzenta e felina movendo-se na sombra. Rápido, mandou-lhe um tiro, mas falhou.
- É uma terra de leões, não há dúvida - disse. E então começou a fazer uma grande fogueira do outro lado do tufo de erva, para manter os cavalos entre dois fogos.
Cortou a carne de veado em pedaços pequenos, e passou uma hora a assá-los. Então, deitou-se para descansar.
Na madrugada cinzenta, ergueu-se já refeito. Os cavalos estavam descansados. Nagger relinchou-lhe as boas-vindas. Era evidente que tinham passado uma noite agitada.
Slone encontrou traços de leão na nascente e em terrenos arenosos. Pôs-se a caminho pelo desfiladeiro que separava a grande parede do planalto. Alguns arbustos
espessos dificultavam a marcha. Parecera-lhe não ser muito longe, mas era-o. Havia pinheiros dispersos e rochas enormes que lhe obstruíam a vista. Mas uma vez lá
em cima verificou que se encontrava num cume estreito e que em ambos os lados se prolongava em encostas.
Mesmo por debaixo de Slone abria-se a ravina, ardente e gloriosa pelos picos e encostas onde o sol batia, mística, esfumada e assombrada no seu íntimo misterioso.
Slone virou pelo caminho descendente que era duro e escarpado. Wild Fire tinha andado para a frente e para trás deixando muitas marcas antes de iniciar a descida.
Desmontando, Slone pegou nos arreios de Nagger e começou a descer. O outro cavalo, depois de relinchar e bater com os cascos no chão, seguiu-os.
O caminho levava-os através de um precipício de cedros. Era cruel meter por ali um cavalo, mas Nagger estava bem ferrado. Gradualmente Slone foi descendo, afastando-se
da empolada parede. Era um caminho duro e rude. milhas de um lento ziguezague, desviando-se dos cedros. Então alcançaram uma ravina.
A ravina tornara-se um canyon. cujo cume era seco e cheio de rochas e cascalho. A água que brotava de um penhasco, aumentando com outras nascentes, depressa se
volvia num ribeiro. Gradualmente a fenda foi-se tornando morna e acolhedora, luxuriante com erva e flores.
Quatro horas a virar e a contornar pedras e curvas acabaram com o cavalo de carga, e Slone deixou-o numa ampla parte da ravina onde a erva e a água nunca faltavam.
Slone parou aqui pela tarde, permitindo a Nagger pastar o que quisesse. Todo o equipamento, excepto o que trazia na sela, o saco com os escassos quilos de carne
e mantimentos, os dois utensílios, deixou-os ficar antes de seguir viagem.
Chegou ao local onde Wild Fire virara para uma ravina lateral. Tendo trepado, Slone encontrou-se num planalto espaçoso e árido, rodeado por paredes enormes de rocha
colorida. O sol batia-lhe violentamente e uma lufada de vento quente misturado com poeira soprava através do planalto.
De quando em quando, apenas algumas plantas isoladas quebravam a monotonia do cenário. Passaram da areia vermelha e do cascalho para a argila,

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até à vermelha pedra dura onde os traços de Wild Fire se perderam. Slone deixou Nagger escolher o caminho que se tornava cada vez mais duro.
Esta rocha dura depressa iria tornar os cascos de Wild Fire finos. Slone regozijou-se. Começou a olhar em frente, começando a acreditar na possibilidade de ver
a sua presa.
Tornou-se necessário subir e descer por desfiladeiros. Slone continuava persistentemente. A sua frente, o planalto crescia mais selvagem até perder de vista; o
avanço tornava-se cada vez mais difícil e perigoso.
O planalto parecia acabar com uma série de enormes cabos e promontórios. Slone sentiu alívio, lá em baixo nos desfiladeiros, onde não podia ver muito longe. De
momento saiu de um, do qual se estendia um estreito rebordo com uma inclinação demasiado perigosa para qualquer cavalo. Meteu por ali com muito menos confiança do
que Nagger. Para a direita havia uma caverna de parede baixa, e poucos passos para a esquerda um negro precipício.
Aqui o trilho estava muito pouco delineado e tinha seis polegadas de largura, sendo também em declive. Esta subida parecia interminável a Slone. Ele apenas olhava
os seus pés e ouvia os passos de Nagger. A rampa estendia-se por uma longa curva, virando, e a pouco e pouco afastando-se do precipício. E começava a subir um pouco
perto do fim. Slone soltou um suspiro de alívio quando finalmente conduziu Nagger para terreno plano.
De súbito, um som estranho, ainda que familiar, fez Slone parar, como se tivesse sido atingido. O selvagem, penetrante e agudo resfolegar de um garanhão. Nagger
soltou um relincho como resposta e começou a bater no chão com as suas ferraduras. Emocionado, Slone olhou em frente.
Ali, a alguns metros de distância, num promontório, estava um cavalo vermelho.
- Meu Deus! É Wild Fire - disse Slone, num sopro.
Wild Fire era tão vermelho como o fogo. A sua longa crina selvagem ao vento era como uma chama chicoteante. Tendo como cenário a gigantesca ravina, ele parecia
enorme, um cavalo demoníaco, pronto para mergulhar nas estranhas profundezas. Ele olhava por cima das espáduas com a cabeça muito erguida e cada linha era uma mistura
de instinto selvagem.
De novo soltou aquele relincho agudo que cortava o ar. Slone entendeu-o como uma chamada para Nagger. Se Nagger estivesse sozinho, Wild Fire tê-lo-ia morto. Nagger
também percebeu isso, pois como resposta soltou um relincho de fúria e terror. Foi preciso um braço de ferro para o segurar. Então, Wild Fire saltou para baixo e
desapareceu do alcance da vista de Slone.
Slone apressou-se a segui-lo, tendo esbarrado com uma enorme fenda no rochoso planalto. Tinha de a transpor. E de novo outro obstáculo lhe acalmou a pressa de alcançar
aquele promontório. Teve de seguir mais devagar. Wild Fire só tinha estado perto da vista.

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Trepando para baixo e para cima, trabalhando arduamente, pelo menos aprendeu a ser paciente. Ele tinha visto Wild Fire de muito perto. Isso era o suficiente. Levou-lhe
uma hora de trabalho para chegar ao ponto por onde Wild Fire tinha desaparecido.
Era sem dúvida um promontório, que dominava um vale cerca de mil pés abaixo. A límpida corrente de um ribeiro atravessava-o. Havia linhas verdes de algodoeiros
que esvoaçavam ao vento. Então Slone viu Wild Fire calmamente a atravessá-lo em direcção ao ribeiro. Ele descera por um rochedo que a Slone parecia perpendicular.
Wild Fire parecia caminhar com dificuldade. Slone, certificando-se disso, sofreu um choque. Então, quando o significado de semelhante deficiência foi totalmente
apreendido, deu largas à sua alegria selvagem e agitou o seu chapéu. O garanhão vermelho pareceu ouvi-lo, pois olhou para cima. Então, continuou, dirigindo-se ao
regato onde bebeu longamente. Quando o começou a atravessar, a poderosa corrente fê-lo recuar em vários sítios. A água agitava-se à sua volta. Mas era evidente que
não era muito profunda e por fim lá conseguiu atravessar. Do outro lado tornou a olhar para Nagger e Slone, e continuando apressado desapareceu pelos campos de algodão.
- Como hei-de descer? - matutava Slone.
Ali havia uma fenda, na parede da ravina, uma ladeira de pedra onde cavalos tinham subido e descido. Slone nunca vira um caminho tão perigoso. Como ir em cima do
cavalo era impossível, foi à frente. Se o cavalo tropeçasse, a tragédia seria dupla, pois Nagger atiraria o seu dono abaixo do rochedo. Slone cerrou os dentes e
começou a descida.
A fresta da parede levava a uma rampa, e a rampa descia degrau a degrau com declives a pique. Nagger bateu nos degraus de pedra com os dois cascos da frente ao mesmo
tempo. Nas descidas apoiava-se nas ancas com as patas traseiras tesas e os cascos batendo na pedra. Ele relinchava e estava coberto de suor. Nalguns lugares resfolgava
e abanava a cabeça de um lado para o outro.
Sempre que Slone parava para ver as marcas do trilho, ele sentia-se grato. Mas era raro. A pedra era como se fosse aço vermelho. Mas Nagger nunca vacilou. Muitas
vezes tropeçou, até mesmo com ambas as patas dianteiras mas nunca com as quatro. Assim não caiu. E a parede vermelha começou a surgir por cima de Slone.
De repente, chegou a um ponto de onde parecia impossível continuar a descer. Era uma caverna redonda, apenas com algumas raras e rudes superfícies para apoiar os
pés. Wild Fire deixara marcas bem visíveis nesse lugar e alguns pêlos vermelhos nos pontos mais perigosos. Ele tinha tropeçado. Por baixo havia uma saliência que
felizmente evitou que caísse. Slone começou a descida, mas quando Nagger começou a tropeçar teve de lhe soltar os arreios e saltar. Ambos chegaram sãos e salvos.

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Continuaram a descida para atingir a base da parede, exaustos e encharcados de suor, mas salvos. Slone suspirou e afagou o cavalo. Então dirigiu-se ao ribeiro.
A água era verde com espuma branca. Slone mergulhou e achou a água morna e acolhedora e muito rápida. Teve de se agarrar a Nagger para não ser levado pela corrente.
Atravessaram-na com segurança. Ali, na areia, estavam as marcas de Wild Fire. A pista atravessava a água em cada curva do estreito e sinuoso vale. Slone apreciava
meter-se na água. Ele levava a arma de fora e deixava a água levá-lo. Uma dúzia de vezes, ele e Nagger tiveram de lutar contra a corrente. Então chegaram a uma espécie
de caixa que fechava o vale em paredes de ravina, e evidentemente que aqui a pista seguia o leito da água. Slone mergulhou e rebolou, flutuando na frente do robusto
cavalo. Nagger tinha água até ao peito mas não caiu. Esta ravina parecia estar cheia de um bramido encovado e ondeado. Abria-se para um vale espaçoso. As marcas
de Wild Fire apontavam para o lado esquerdo.
Aqui o caminho era bom, tendo em consideração os outros locais por onde haviam passado. Uma vez na parte de cima do vale, Slone viu Wild Fire lá ao longe, em cima
na encosta. Ele não parecia coxear, mas não andava depressa. Slone observou-o enquanto subia.
Por fim, no topo da encosta, Wild Fire apareceu olhando para trás e para baixo e depois desapareceu. Slone começou a subir. Muito antes de atingir o cume da encosta
ouviu o nítido barulho de um rio. Crescia num bramido e no entanto parecia distante.
Slone atingiu o cume, para ver a ravina abrir-se num enorme vale, e lá muito ao longe, em baixo, uma brilhante e ensolarada encosta que levava a uma profunda e escura
ravina por onde serpenteava um rio avermelhado.
De algum modo, o rio era o que ele estava à espera de encontrar. A força que poderia ter cortado e moldado esta velha ravina só poderia ser a de um rio como aquele.
O caminho levava para baixo, e Slone não tinha dúvidas de que atravessava o rio e conduzia para fora da ravina.
Lentamente, começou a descida. A medida que avançava parecia que o troar do rio diminuía. Ele não podia perceber porquê. Levou-lhe meia hora para atingir a última
elevação, uma sinistra, escura e rochosa ravina que o rio atravessava. Ele não tinha visto sinal de Wild Fire neste lado, mas encontrou as suas marcas, e elas saíam
desta última elevação, por um desfiladeiro no escuro banco de mármore até a um banco de areia no rio.
Wild Fire tinha-se dirigido pela areia até à água. Slone estudou o rio e a corrente. A água corria devagar e pesadamente, em pequenos redemoinhos. Lá de longe
da ravina, chegava o barulho de um curso rápido, e lá de baixo o barulho de um outro, mais pesado e mais perto. O rio parecia tremendo, de alguma maneira mais do
que Slone pensara, no entanto não era veloz. Observando a rude e escura parede por cima dele, viu marcas que mostravam ter o rio atingido sessenta pés mais acima
do que se apresentava agora.

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Empilhou e atou os seus mantimentos e armas à sela, para os manter secos, e procurou um sítio para entrar na água.
O grande cavalo mergulhou, quase submergindo, e começou a nadar. Slone manteve-se na corrente atrás dele. Ele descobriu que a água era espessa e o cansava, portanto
era necessário agarrar-se a um estribo e ser rebocado. Nagger lutava arduamente perto da margem oposta, e foi aterrar a um banco de rocha. Aí, havia tufos de areia
onde as marcas de Wild Fire eram tão recentes que a água ainda não se tinha evaporado.
Slone descansou o cavalo antes de tentar subir aquele bocado de rocha. De qualquer maneira, Wild Fire encontrara uma maneira fácil de subir. Deste lado da ravina,
a rocha nua não predominava. Uma clara pista conduzia a uma poeirenta encosta sobre a qual aparecia alguma vegetação e alguns cactos. Meia hora de subida levou
Slone a verificar que entrava num vasto vale, que subia e estreitava até um desfiladeiro nas escuras montanhas.
E a uma escassa milha, brilhando ao sol do oeste, estava o vermelho garanhão, movendo-se lentamente.
Slone apressou o passo. Mesmo antes do anoitecer, chegou a um local ideal para acampar. O vale fechava de tal maneira que as sombras das suas paredes se encontravam.
Uma plantação de algodão rodeava uma nascente, a erva viçosa era abundante, salgueiros e flores faziam canteiros, formando um oásis no despido vale.
Naquela noite dormiu de um só sono. Abriu os olhos para ver as torres, os cumes e as enormes paredes daquele vasto e quebrado caos de ravinas para lá do rio. Eles
emergiam agora do místico cinzento do amanhecer, crescendo cor-de-rosa-lilás e púrpura.
Levantou-se e executou as escassas tarefas, que, depressa concluídas, lhe permitiram uma partida antecipada.
Wild Fire tinha pastado a não mais de uma milha. Slone olhou esperançado para a estreita ravina, mas não foi recompensado com a visão do garanhão. À medida que avançava
numa subida gradual, tornou-se consciente de que o desfiladeiro por que ele tanto ansiara era onde as enormes paredes vermelhas se fechavam e quase se encontravam.
E o trilho ziguezagueava por este estreito caminho tão vincadamente que só se podiam dar alguns passos sem descansar.
Slone continuou por uma hora - um século- até estar encharcado, a escaldar e com um grande peso no peito. No entanto estava apenas a meio do caminho daquela horrorosa
abertura entre as paredes. A medida que ia avançando, o desfiladeiro alargava-se.
Slone descansou várias vezes. Nagger apreciava este gesto e relinchava, agradecido, em cada paragem. Na monotonia desta pista Slone chegou a esquecer o motivo da
sua perseguição. E quando de repente Nagger resfolegou de medo, Slone não estava preparado para o que viu.

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Por cima dele corria uma parede baixa e vermelha, para onde o trilho conduzia. Na curva que era um promontório, a uns escassos cem pés por cima dele, viu algo vermelho,
movendo-se, aparecendo ao alcance da sua vista. Era um cavalo.
Wild Fire - ali, à distância de poucos metros.
Ali estava ele a olhar para baixo. Ele enchia todos os sonhos de Slone. Só que era maior. Mas tão magnificamente proporcionado que não parecia pesado. O seu casaco
era peludo e vermelho. Não era lustroso. Era a cor que o fazia brilhar. A sua crina era como uma crista, erguendo-se e depois caindo. Slone nunca vira tanto músculo
num cavalo. No entanto, a sua figura era maravilhosa de graça. A cabeça majestosa, selvagem, esplêndida.
Slone agitou o punho fechado em direcção ao garanhão, como se o cavalo fosse humano. Wild Fire virou-se, brilhando no cenário negro, e desapareceu.


CAPÍTULO VI

APANHADO!


Slone não tornou a ver Wild Fire durante três dias. Demorou um dia inteiro para sair da ravina. O segundo dia foi preenchido com uma lenta marcha de trinta milhas
até uma floresta de pinheiros e arbustos de cedros, através da qual se podiam ver as grandes paredes vermelhas e amarelas da ravina. Nessa noite, Slone encontrou
um pouco de água, num buraco de uma rocha, e alguma erva para Nagger.
No terceiro dia de viagem atravessou quarenta milhas ou mais de floresta plana, seca e aromática, mas sem a frescura e a beleza da floresta da parte norte da ravina.
Slone acampou nessa noite num pequeno lago lamacento no bosque, onde os traços de Wild Fire estavam claramente marcados.
No dia seguinte, Slone cavalgou para fora da floresta até a uma região de escassos cedros enfezados e descorados, e depois até à crista de um planalto, donde o brilhante
deserto oferecia as suas vastas e desoladoras distâncias, proibitivas e ameaçadoras. Mas isso não desencorajou Slone. pois ao longe, nos cumes descobertos, movia-se
um vulto vermelho, em passo de caracol, num movimento lento e cheio de cor, que era Wild Fire.
Num terreno aberto como era este, Nagger mostrou tudo o que valia, carregando com duzentos e cinquenta quilos. Não se importava com o calor, com a areia, com a distância,
nem com a carga. Não se cansava. Era um engenho de uma força tremenda.
Slone aproximava-se de Wild Fire. e pela noite desse dia ficou a meia milha do garanhão.

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Resolveu manter-se a essa distância. Nessa noite, acampou num local onde havia erva fresca, mas não havia água.
No dia seguinte, Slone fez cinquenta milhas e alcançou o berço do vale. onde uma nascente corria estreita e se lançava por cima de um vasto fundo arenoso. No dia
seguinte atravessou-o e as marcas de Wild Fire ainda estavam molhadas na areia. O garanhão ia abrandando. Slone viu-o coxeando e sem muito avanço. Havia umas dez
milhas de terreno plano, duro como rocha, do qual nada crescia, nem um pequeno tufo de erva. E a seguir existia uma passagem através de uma região estranha de dunas
de argila, azuis e violetas, alisadas e amaciadas pela chuva e pelo vento.
Wild Fire estava agora em terreno macio. Ele tinha-se desviado da sua rota a direito. Procurava os buracos e depressões da terra onde pudesse haver água. E ele
agora não desprezara uma poça de água de espuma esverdeada com as suas bordas brancas alcalinas.
Nessa noite Slone acampou com Wild Fire à vista. O garanhão parou quando os seus perseguidores pararam. E começou a pastar no mesmo pasto que Nagger.
Na manhã seguinte, Wild Fire não estava por perto, mas deixara o seu rasto na areia. Slone seguiu-o com Nagger a trote, No meio do areal. Slone chegou até a uns
velhos campos de cereal e a um açude destruído - onde tinha sido armazenada água- e a umas pistas bem definidas que conduziam para a direita. Algures, ali no deserto,
viviam índios.
Neste ponto Wild Fire abandonou o caminho que tinha seguido durante muitos dias e virou mais para norte. Foi precisa toda a manhã para trepar três enormes braços
e bancos que levavam ao cume de uma falésia vasta e extensa.
Então, andaram mais dois dias em areia e outro numa subida vagarosa passando do nada para o cinzento e do cinzento para o verde, e em seguida para o purpúreo dos
cedros e das pastagens - estes três dias escaldantes foram suportados apenas com um pouco de água.
Wild Fire estava coxo e abatido, enquanto Nagger mostrava força e resistência, e Slone fatigado e sujo. caminhou milhas e milhas a pé para poupar o seu cavalo.
Chegou uma manhã em que Slone subiu até a um planalto de cedros, cuja subida era um dia de viagem, e que desembocava num labirinto de ravinas. Havia árvores, erva
e água. Era uma região alta. fria e selvagem, tal como a zona que havia deixado. Durante dias, acampou no rasto de Wild Fire. sempre deixando que este o guiasse,
sempre à espera de encontrar uma maneira de o emboscar.
O garanhão vermelho passava a maior parte do tempo a olhar para trás. Sempre que Slone aparecia à vista ele virava a cabeça por cima da garupa, observando-o. E no
terreno macio destas ravinas começou a recuperar da sua ferida. Mas isto não preocupou Slone. Mais cedo ou mais tarde Wild Fire desceria a algum buraco de paredes
elevadas,

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do qual não haveria saída, ou depararia com alguma ravina a pique, ou subiria a algum penhasco sem descida possível, a não ser que passasse por Slone, ou desembocaria
numa íngreme e macia descida onde os seus cascos iriam tropeçar e forçá-lo a abrandar.
A natureza da região mudara. Slone entrava numa zona como nunca tinha visto - um planalto entrecruzado em todas as direcções por estreitos e desfiladeiros com paredes
vermelhas de milhares de pés de altura. E uma das estranhas curvas da ravina abria-se para um vasto vale.
O planalto tinha sido moldado pelo tempo e pelo clima, deixando-lhe enormes marcas nas paredes de pedra, todas erguendo-se isoladas, diferentes em tamanho e feitio,
mas todas bem moldadas, de linhas direitas. Elas erguiam-se por toda a parte, enormes, monumentais, de várias cores, emprestando um aspecto singular e maravilhoso
ao verde e cinzento do vale, estendendo-se para norte, onde se erguiam até às nuvens.
O único ser vivo à vista de Slone era Wild Fire. Ele brilhava, vermelho, na vertente esverdeada.
Slone cavalgou pela encosta verde até ao vale. Wild Fire olhou para trás. para ver os seus perseguidores, e então a solene calmaria foi quebrada por um selvagem
e agudo relincho.
Dia após dia, acampando aonde a noite o surpreendia, Slone seguia o garanhão, nunca o perdendo de vista até a noite cair. Slone perdeu o controlo do tempo.
O esforço e as privações tinham-no estourado e ele era como ferro. A sua roupa estava em farrapos, as suas botas desfeitas. Há muito que o seu milho acabara, assim
como todos os mantimentos, excepto o sal. Ele vivia da carne dos coelhos, mas estes eram raros, e o tempo chegou em que não havia nenhum. Durante alguns dias não
comeu. A fome não o fazia sofrer. Matava um pássaro do deserto, aqui e além, e uma vez matara um gato selvagem que atravessara o vale. Na verdade, sentia as forças
a diminuírem. Muitas vezes tivera a espingarda apontada a Wild Fire. e um estranho e proibitivo pensamento ia nascendo nele. de que era necessário matar o garanhão.
O pensamento parecia involuntário, mas a sua mente rejeitou-o.
Enquanto Slone prosseguia a sua perseguição, nunca deixando Wild Fire descansar de dia, o tempo passava lentamente. A Primavera deu lugar ao Verão. O sol ardente
queimava a erva, os poços de água rareavam no vale só se encontrando água nas ravinas e os ventos secos começavam a soprar a areia.
Wild Fire saiu deste vale aberto, para sueste, onde as grandes montanhas se erguiam, e ainda mais para trás, se juntavam, até que em extensão algumas se uniam com
cumes moldados às paredes do rodeante planalto. Slone apercebeu-se de que de uma maneira ou de outra a perseguição estava a aproximar-se do seu fim.

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Encontrou um poço de água, à entrada de uma fenda na parede, e aí deixou que Nagger descansasse e pastasse durante um dia inteiro - o primeiro dia de algum tempo
para cá em que ele não mantinha o garanhão ao alcance da sua vista. Esse dia foi assinalado pela boa sorte de matar um coelho.
No dia seguinte, Slone, enfrentando as enormes sombras das montanhas, procurou de novo a sua caça. Para variar, Wild Fire tinha trepado uma encosta, através de
uma estreita passagem, rodeado por areia solta. E Slone pasmou perante um enorme anfiteatro cheio de montanhas, assim como toda aquela estranha região.
Uma bacia jazia três milhas abaixo dele. O chão era branco e parecia mover-se lentamente ou irradiar ondas de calor. Estudando-a, Slone concluiu que essa sensação
era causada pelo vento na comprida erva descorada. Ele tinha atravessado pequenas áreas desta erva em diferentes pontos da região.
A pista de Wild Fire conduzia a esta bacia. Slone, franzindo os olhos, descobriu a silhueta vermelha pertencente ao garanhão. "Ele quer sair da região", pensou,
enquanto apreciava a cena.
Com um olhar lento e perscrutador, Slone estudou a configuração da parede e da encosta, e quando deu a volta à enorme depressão, certificou-se de que Wild Fire não
poderia sair a não ser pela estreita passagem por onde tinha entrado. Slone colocou Nagger na entrada desta passagem - um buraco com alguns metros de largura, fechado
por paredes rudes e fendidas, por um lado, e por uma encosta impossível de subir pelo outro.
Não havia água nessa seca concavidade. Slone reflectiu acerca da inutilidade de manter Wild Fire ali, pois Nagger não aguentava mais do que Wild Fire sem beber.
O vento soprava de oeste e subia a encosta com o odor de erva morta e seca.
Mas aquele vento quente deu a Slone uma ideia, e de repente tornou-se tenso, excitado, no entanto cruel e duro.
- Wild Fire, hei-de fazer-te correr como o teu próprio nome por essa erva morta - gritou.
Ele viu que se conseguisse incendiar a erva do outro lado, o vento e as chamas conduziriam Wild Fire até ali. As paredes e a subida estreitavam a passagem, mas a
erva crescia a poucos metros do local onde Slone estava. Mas parecia impossível chegar por detrás de Wild Fire.
"A noite, então, eu poderia ir por detrás dele", disse Slone, pensando e estreitando o olhar para perscrutar o círculo de parede e a encosta. "Por que não? Não há
vento à noite. Esta erva iria arder lentamente até de manhã, até o vento se levantar, e ele sopra de oeste há alguns dias."
Subitamente Slone começou a dar palmadas no paciente Nagger e a gritar-lhe com uma alegria selvagem.

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- Velho cavalo, já o apanhámos. Já o apanhámos. Temo-lo preso amanhã por esta hora.
Slone cavalgou pela bacia durante uma milha, certificando-se de que Wild Fire não poderia trepar por aquele lado. As montanhas acabavam num muro de pedra completamente
a direito. Então atravessou para o lado esquerdo. Aqui a subida arenosa era demasiado a pique, até mesmo para ele trepar. E havia erva que iria arder. Regressou
à passagem.
Então Slone reflectiu. Tirou os arreios a Nagger e soltou-o, e ele, com um relincho foi à procura de erva. Então Slone carregou a sela para uma sombra ao pé de
uma laje de rocha e de um cedro anão, e aqui preparou-se para observar, pensar e esperar.
Wild Fire estava completamente à vista a cerca de duas milhas de distância. Gradualmente, pastava dirigindo-se para as montanhas e para o fim da grande bacia. Slone
acreditava, por o lugar ser tão grande, que Wilde Fire pensasse haver uma saída do outro lado, ou pela encosta, ou através das paredes.
Slone estava deitado à sombra, a cabeça apoiada na sela, e enquanto olhava o brilhante buraco, fazia os seus planos. O dia passou lentamente. No fim dessa tarde,
Slone comeu o último bocado de carne. Ao pôr do Sol o vento desapareceu e o ar arrefeceu. Nagger não estava longe, mas Wild Fire tinha desaparecido, provavelmente
atrás de uma das montanhas.
Quando caiu o crepúsculo, Slone foi à procura de Nagger e, regressando com ele, pôs-lhe a sela e os arreios. Mais à frente, no caminho, encontrou pedaços de cedro
mortos, e apanhou os suficientes para o seu fim. Acendeu uma fogueira e queimou as pontas dos paus, pondo-os em brasa. Fazendo um molho com eles, pô-los debaixo
do braço, com as partes ardentes para trás, e então montou no seu cavalo.
Já estava escuro quando começou a descer o vale. Mantendo-se na orla da encosta esquerda, meteu Nagger a trote. O barulho da erva a quebrar era música aos ouvidos
de Slone.
Por fim alcançou a lenta elevação de rocha, que marcava toda a extensão daquele lado. Virando à direita, cavalgou até ao vale. Então elevando um dos paus ao vento
até a ponta deitar fumo e chama deixou-o cair na erva.
Instantaneamente a erva inflamou-se com um pequeno ruído. Nagger relinchou. Sem olhar para trás, Slone cavalgou através do vale, deixando cair um pau flamejante
em cada quarto de milha. Quando alcançou o outro lado, uma dúzia de fogos ardiam lentamente atrás de si, com o fumo elevando-se lentamente.
Então conduziu Nagger até à parte de trás da subida de areia, e até à boca da passagem. Aí procurou marcas. Wild Fire não tinha saído, e Slone sentiu-se aliviado
e exultante. Tomou posição no meio da parte mais estreita da passagem, e aí, com Nagger pronto para qualquer coisa, de novo se acomodou para observar e esperar.

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Lá longe, na escuridão do vale, doze linhas de fogo, bastante separadas, ardiam de encontro umas às outras. Pareciam fracas e lentas, com excepção de uma chama maior
e ocasional. Slone observava, estranhamente fascinado.
Ele ia observando e as linhas de fogo tornavam-se visivelmente mais brilhantes e sombras de fumo pálido foram aparecendo. À esquerda do vale os dois fogos mais
intensos, os primeiros que ele tinha acendido, estavam cada vez mais próximos. Eles pareciam extensos em terreno descoberto. Quando as duas linhas se juntaram, uma
repentina e enorme chama elevou-se.
- Ah! - exclamou o vaqueiro, e então observou as outras linhas que se juntavam. Slone sentia-se cada vez mais aliviado à medida que as linhas se iam unindo. As horas
da noite foram passando até que por fim uma longa e contínua linha de fogo se espalhou por todo o vale, cuja linha rubra e ardente apenas era cortada onde as montanhas
se elevavam.
A escuridão do vale modificou-se. A luz da Lua mudou. O brilho das estrelas mudou. Ou a linha de fogo estava a encontrar matérias inflamáveis, ou estavam cada vez
mais perto, pois as chamas começaram a crescer e a desenrolar-se.
Uma ampla faixa de vale tornou-se iluminada, e por trás pairavam as montanhas, misteriosas e escuras, com colunas de fumo branco e amarelo a rodeá-las.
De repente, o sensível ouvido de Slone vibrou com um som excitante. Baixou-se, pousando a orelha na areia. Rápidos e ritmados sons de cascos fizeram-no saltar, alcançando
o laço com uma mão e a espingarda com a outra.
Nagger levantou a cabeça, cheirou o ar e relinchou. Slone escondeu-se na faixa escura que estava por detrás dele. Ouviu o bater de cascos, velozes, e cada vez mais
audíveis. As sombras da noite eram enganadoras. De novo Slone se escondeu no vácuo ou no que parecia ser o vácuo. Mas também isso tinha mudado, se tinha iluminado.
Grandes rolos de fumo elevavam-se brancos e amarelos, voltavam para trás ao chegar às paredes das montanhas, para se elevarem no ar, escurecendo as estrelas. Era
uma luz como ele nunca vira antes, excepto em sonhos.
No pálido caminho atrás de Slone, naquela espécie de encosta de areia que se abria para o vale, aparecia um escuro objecto a mexer-se, como um fantasma esvoaçante.
Era o fantasma de um cavalo. Slone sentiu que os seus olhos enganados pela mente viam imagens corridas. Mas que era aquilo que lhe martelava os ouvidos - rápido,
duro e ritmado? Nunca o seu ouvido o havia enganado. Aquele objecto corredor era um cavalo e voava com o vento. Slone sentiu o coração apertar-se-lhe.
O cavalo corredor parou mesmo na faixa de luz que emanava da relva ardente. Encontrava-se, com os seus contornos bem definidos, a menos de cem passos de Slone. Era
Wild Fire.

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Slone soltou um grito involuntário. As emoções sucederam-se. Como se tinha atrevido a crer que poderia capturá-lo? Slone olhou e tornou a olhar, enchendo a sua mente,
sem nada lamentar, seguro de que o momento era compensador de tudo por que passara.
As luzes magníficas engrandeciam Wild Fire e mostravam-no claramente. Parecia gigante. Brilhava negro em contraste com o fogo. A cabeça estava erguida e a crina
esvoaçante. Por trás dele, o fogo ardia e a enorme coluna de fumo elevava-se majestosamente e as grandes montanhas pareciam recuar misteriosamente à medida que as
chamas iam avançando. Era um magnífico e estranho espectáculo, que o silêncio adensava ainda mais.
Mas de repente Wild Fire quebrou esse silêncio com um relincho que para os sentidos alertados de Slone parecia uma rajada tão penetrante como o crepitar do fogo.
Depois de resfolgar, Wild Fire saltou na direcção da estreita passagem.
Slone gritou com toda a força dos seus pulmões e disparou a sua arma para aterrorizar o garanhão e levá-lo a regressar. Depressa Wild Fire se tornou de novo num
negro objecto corredor, e então desapareceu.
A grande linha de fogo passara para as montanhas e agora continuava contínua através do vale da parede à encosta. Wild Fire nunca iria conseguir perfurar aquela
linha de fogo. E agora Slone via, a oeste, no pálido céu, que a madrugada estava a chegar.


CAPÍTULO VII

UMA BATALHA NO FUMO


Parecendo extremamente contente com o primeiro raio de sol, Slone sentiu uma brisa bater-lhe na face. Tudo o que agora precisava era de um vento de oeste. E aqui
vinha a certeza de que ele iria aparecer.
O vale estava enevoado e fumarento, com lentos rolos de fumo que se erguiam onde a linha de fogo ardia. A chegada da luz do dia empalideceu o brilho da chama, embora
aqui e além Slone pudesse ver algumas chamas mais ardentes. O garanhão selvagem mantinha-se no centro do vale, deste ou daquele lado, mas nunca de frente para o
fumo. Slone certificou-se de que Wild Fire ia cedendo terreno à medida que a coluna de fogo avançava na sua direcção.
A brisa ia-se tornando cada vez mais forte e segura, até que Slone viu que o vale se começava a encher de fumo. E chegou a altura em que a linha de fogo de novo
se estendeu por todo o vale.

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Wild Fire estava encurralado. Slone enrolava e desenvolava o laço, nervosamente. A grande oportunidade da sua vida estava a chegar - o mais difícil e importante
arremesso que algum dia fizera com uma corda. Ele não falhava frequentemente, mas falhava algumas vezes - e aqui tinha de ser directo e seguro.
Aborrecia-o que as suas mãos estivessem a tremer e que um peso lhe estivesse a obstruir a respiração. Sentia-se bastante afectado, não nas melhores condições para
lutar com um cavalo selvagem. Slone estava preparado para horas de atenta vigília, e para um desesperado esforço que poderia matar Wild Fire e ferir Nagger, ou para
uma longa corrida e para uma longa luta.
Mas depressa descobriu estar enganado quanto à longa espera. O vento tornara-se muito forte e o fogo avançava velozmente. As chamas ateadas pelo ventro transformavam-se
numa enorme barreira. Em menos de uma hora, Wild Fire ficou encurralado de encontro à parte mais estreita da passagem e começou a correr para a frente e para trás.
Wild Fire mostrava estar aterrorizado, mas não tentou passar o estreito. Em vez disso dirigiu-se à parte direita da encosta e começou a trepar. A subida era íngreme
e escarpada, no entanto o garanhão trepava. O pó formava nuvens, o cascalho rolava e a areia caía em grandes pedaços.
- Vai em frente, demónio vermelho - gritou Slone. Ele estava extasiado. Naquele banco macio, Wild Fire iria cansar-se sem se magoar.
Slone observava o garanhão com admiração, pena e contentamento. Wild Fire não conseguiu avançar muito, pois escorregava quase tanto como avançava. Ele experimentou
um sítio atrás do outro. A encosta em cima era interminável e cada vez mais íngreme, mais difícil ao pé do cume. Slone tinha absoluta certeza de que nenhum cavalo
a poderia trepar. No entanto, ficou apreensivo, pois Wild Fire poderia manter-se ali na encosta até que a linha de fogo passasse.
Grandes bocados de areia e cascalho caíram para se esborracharem em pequenos pedaços cá em baixo. Wild Fire, agora de joelhos, tentou desesperadamente trepar,
até que atingiu meio caminho da subida, num enorme e amarelo banco de areia. Aqui foi obrigado a parar devido a uma saliência que teria trepado se as suas patas
se encontrassem livres. Mas ele estava bastante enterrado na areia. Pela primeira vez olhou para baixo, para o fogo crepitante e para Slone.
De súbito, o banco de areia começou a deslizar com ele. Relinchou de medo. A avalanche começou lenta,e não era apenas uma queda de areia superficial. Era mais profunda.
Começou, depois parou e depois voltou a começar. Wild Fire parecia afundar-se. A sua luta apenas o prendia cada vez mais. Então o banco de areia, com um rugido tremendo,
começou de novo a mover-se. Desta vez deslizou velozmente.
De novo a avalanche parou de repente. Slone viu, pelo grande buraco que tinha causado, que era sem dúvida profunda. Era essa a razão

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por que não tinha desabado rapidamente. Quando a poeira se desvaneceu, Slone viu o garanhão deslizar na areia, impotente.
Como um gato selvagem, Slone subiu para Nagger, e com um laço em cada mão correu cerca de um quarto de milha, mas como a erva estava a rarear, não avançava tão
depressa como começara. A posição do garanhão situava-se a meio caminho entre o fogo e Slone, umas cem jardas acima na encosta.
Como um louco, Slone trepou pela areia derrubada, levado pela fúria da excitação. No seu entusiasmo tropeçou, rebolou, caiu e levantou-se, até chegar ao local onde
Wild Fire estava prisioneiro.
O garanhão poderia ter-se livrado da areia se se pudesse mover. Mas apenas podia mover a cabeça. Mantinha-a erguida, com os olhos selvagens, com a sua enorme boca
aberta, os dentes a brilhar.
A medida que Slone avançava, a avalanche deslizou um metro ou dois, parou, tornou a deslizar, e de novo começou com aquele barulho troante. Ele saltou mais perto
enrolando a corda. O laço assobiava por cima da sua cabeça à medida que o agitava. E quando finalmente atirou a corda, o nó apertou-se firmemente à volta do pescoço
de Wild Fire.
- Meu Deus, já o tenho na corda! - gritou Slone, extasiado. A cabeça de Wild Fire parecia a cabeça de um demónio cheio de ódio
Ele abanava-a, com a boca aberta pronta para morder.
Então chegou o momento de vitória para Slone. Nenhum momento se poderia igualar a este, quando deu conta que estava ali com uma corda em volta daquele valioso garanhão.
Todos os dias passados e todas as milhas percorridas, todo o sofrimento e todas as privações e fome estavam pagos por aquele momento. O peito parecia demasiado grande
para a sua respiração.
- Apanhei-te - gritou selvaticamente. - Fiquei contigo. E consegui apanhar-te com a corda. E hei-de montar-te, meu demónio vermelho.
Apertou o laço, puxando a cabeça do garanhão para baixo. O gesto significava a captura e o instinto do vaqueiro era fazer que o cavalo o temesse.
A avalanche ia deslizando aos poucos, como se estivesse a perder o seu suporte. A linha de fogo por baixo consumia a erva enquanto uma longa coluna de fumo se elevava
no céu.
Slone segurou a ponta do laço com a mão esquerda, e com a direita agitou a outra corda, passando o nó pelo nariz de Wild Fire. Então, deixando a primeira corda enrolou
a outra, puxando a cabeça do garanhão para baixo. Avançando com as mãos, Slone acercou-se do cavalo. Saltou para cima da cabeça de Wild Fire, pressionando-a para
baixo, e segurando-a com os joelhos, a pressioná-la. Então, rapidamente, atou o lenço à volta da cabeça de Wild Fire, cegando-o por completo.
- Tudo tão fácil! - exclamou Slone de um fôlego. - Meu Deus,

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ninguém iria acreditar! Será um sonho? - Levantou-se, libertando a cabeça do garanhão.
A avalanche começara a deslizar e a dar de si. As nuvens de pó levantavam-se por todo o lado. A areia parecia abrir-se e afundá-lo até OS joelhos. O cascalho caía
com um ruído suave.
Então saltou rapidamente, segurando as cordas, mantendo-se direito e ornando como se estivesse num barco. Sentiu os sucessivos degraus da discida, a longa inclinação
por baixo, e depois o avanço da avalanche à medida que descia ao seu nível. Todos os seus movimentos foram tolhidos violentamente. Parecia meio enterrado na areia.
Enquanto lutava para se desembaraçar, a espessa poeira desvaneceu-se e permitiu-lhe tornar a ver.
Wild Fire estava estendido na sua frente, na orla da descida, e agora estava menos enterrado do que estivera no topo da encosta. Ele debatia-se e provavelmente
depressa estaria apto a erguer-se. A linha de fogo estava agora muito perto, mas Slone não a receava.
Ao som do assobio, Nagger foi ao seu encontro, obediente mas relinchando, com as orelhas puxadas para trás. Parou. Um segundo assobio fê-lo avançar de novo. Slone
finalmente desenvencilhou-se da areia, puxou os laços para fora, e com eles dirigiu-se a Nagger.
- Vá lá - chamou Slone, animador. Alcançou o cavalo com a mão, puxou-o para si, e montando-o num segundo, atou os dois laços na parte mais alta da sua sela.
- Aguenta-o, velho Nagger - gritou Slone, e meteu as esporas no cavalo negro.
Um salto de Nagger tirou o garanhão para fora da areia. Relinchando, selvagem e cego, Wild Fire levantou-se com os músculos a tremer. Saltou, elevando-se e batendo
ameaçadoramente com os cascos.
Slone, rápido com os arreios e esporas, puxou Nagger para o lado e Wild Fire, com o balanço, caiu com ruído. Slone puxou-o e levantou-o por duas vezes antes que
ele se conseguisse manter nas quatro patas. De novo em pé, continuou a espernear, dando largas à sua fúria, batendo violentamente com os cascos. Slone tornou a desviar-se.
E de novo o içou. Ele estava a ser rude. Tinha de agir assim, evitando apenas ferir ou matar o cavalo, pois de outra maneira nunca o dominaria. Mas Wild Fire era
ágil. Pôs-se de pé, e desta vez assim se conservou, começando a correr. Nagger, poderoso como era, não conseguiu suster o choque tremendo e caiu. Slone pôs-se a
salvo com uma destreza própria de um vaqueiro, caindo do cavalo e montando-o novamente, enquanto Nagger esperneava. Nagger entesou a sua enorme ossada e susteve
Wild Fire. Mas a sela escorregou um pouco, os ganchos partiram. Slone atenuou o choque seguindo o garanhão.
Os cavalos tinham-se afastado do fogo, e Wild Fire, livre do fumo sufocante, começou a puxar, andando à volta de Nagger, correndo às cegas.

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Slone evitava os encontrões, fazendo de Nagger o pivot à volta do qual o cavalo selvagem corria enfurecido.
- Aí firme, velho Nagger - repetia Slone. - Ele não te alcança, se ele se livra daquela venda eu mato-o.
O garanhão era forte na sua fúria, mais veloz que uma pantera, maravilhoso de pé. e poderoso como um touro. Mas estava em desvantagem. Ele não podia ver. A areia
macia naquela passagem era profunda e Wild Fire desistiu dos seus pulos enfurecidos. Estava molhado e arfava.
Slone recolheu os laços da sela, encurtando-os um pouco. Wild Fire ergueu-se para o ar, relinchando ameaçadoramente. Slone tentava levar Nagger o mais possível
atrás de Wild Fire. Mas era por pouco que escapava dos cascos. Slone fez uma tentativa desesperada e esporeou Nagger num único salto, ao mesmo tempo de Wild Fire.
Os cavalos colidiram. Slone apertou os laços. O impacte tirou balanço a Wild Fire, tal como Slone havia calculado, e enquanto o garanhão pulava nas suas quatro
patas, Slone esporeou Nagger para perto dele.
Wild Fire já não tinha o comando. Só se podia empinar um pouco, pois Nagger, sempre atrás, deitava-o abaixo, e o braço de ferro de Slone segurava as cordas curtas.
Quando Wild Fire se virou para morder, Slone bateu-lhe no nariz com o seu chicote.
Depois da passagem, os cavalos corriam. Slone viu o verde e cinzento vale e as montanhas isoladas à distância.
- Corre, demónio vermelho! - gritou Slone. - Reboca-nos até rebentares.
Deixaram o desfiladeiro e deslizaram pela pastagem. Slone apercebeu-se pelo bater do vento na sua face, que Nagger estava a ser puxado por uma força tremenda. O
fiel cavalo preto nunca teria conseguido aquela velocidade. Mais abaixo, o vermelho garanhão corria velozmente, até que Slone se apercebeu de que só a morte poderia
deter aquela louca correria.


CAPÍTULO VIII

DOIS CAVALOS E UM HOMEM


Lucy Bostil tinha chamado o seu pai duas vezes e ele não respondera. Ele estava lá fora a atrelar cavalos com Holley, o vaqueiro, e com mais dois homens. Se ouviu
Lucy fez de conta que não. Ela estava de pantufas e não queria ir mais além do que a porta onde se encontrava.
- Somers foi para Durango e Shugrue saiu para caçar cavalos - ouviu Bostil dizer com brusquidão.

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- Bem, penso que posso manejar o barco e ir buscar os cavalos de Creech - disse Holley.
Então um dos outros homens falou. Lucy já o tinha visto mas não sabia o seu nome.
- Claro que não há necessidade de apressar o trabalho. O rio ainda não mostrou nenhum indício de ter subido. Mas Creech está a ficar preocupado. A erva acabou por
lá. Creech tem estado a gastar as suas reservas nestes últimos dias. E isso sai-lhe caro.
- E na parte de cima da ravina? - perguntou Bostil. - Não há lá erva?
- Acho que não. É a maior seca que Creech já teve - replicou o outro.
- Bostil, os cavalos, principalmente os de corrida, deveriam ser trazidos pelo rio - disse Holley.
- O barco tem de ser consertado - cortou Bostil.
Seguiu-se uma pausa incómoda. O vaqueiro de Creech, quem quer que fosse, estava evidentemente a tentar esconder a sua ansiedade.
- Bem. quando é que se pode ir buscar os cavalos? - perguntou deliberadamente. - Creech irá querer saber.
- Assim que o barco estiver pronto - respondeu Bostil. - Eu ponho Shugrue a trabalhar nisso amanhã.
- Obrigado, Bostil. Claro que assim está bem. Creech ficará satisfeito - disse o vaqueiro como que aliviado. Então montando, afastou-se a trote com o seu companheiro.
- Bostil. o Verão seco e a Primavera aqui não são garantia de que não haja neve nas montanhas - disse Holley.
O comentário de Holley surpreendeu Bostil.
- Oh. não é com certeza - replicou ele.
- E em qualquer manhã, podemos ser acordados com o barulho do Colorado - disse Holley significativamente.
- Não é da minha conta que Creech more ali, arriscando o que é seu todas as Primaveras - respondeu Bostil, sombriamente.
Holley abriu a boca para falar, hesitou, desviou o olhar de Bostil e por fim disse:
- Não. não é. - Então, virando-se, afastou-se pensativamente com
a cabeça baixa.
Bostil dirigiu-se para a porta aberta onde Lucy se encontrava. Parecia soturno. Pareceu admirado quando ela o cumprimentou.
- O quê? - disse.
- Eu disse: "Olá, pai" - respondeu ela, pausadamente.
- Olá, a ti. Sabias que Van foi derrubado e se magoou?
- Sim.
Bostil tremeu com a respiração.
- Já não há nenhum vaqueiro em quem se possa confiar - disse desgostoso. - Pensa naquele tolo do Van a deixar-se derrubar por um cavalo de dois dólares.

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E ficar de tal maneira magoado que não pode montar durante dias. Com as corridas à porta. Eu fico doente.
- Van estará bom em poucos dias.
- Não interessa. É um mau negócio. Se eu tivesse algum vaqueiro que segurasse o King, deixava Van ir embora.
- Eu consigo puxar King tão bem como Van - disse Lucy.
- Tu nunca deste nenhum uso a Sage King - disse Bostil.
- Eu amo King um pouco, mas odeio-o um grande bocado - riu Lucy.
- Bem, talvez eu to deixe montar, se Van não estiver em forma - juntou o pai.
- Eu não o montaria na corrida. Mas mantê-lo-ei em óptima forma. Bostil resmungou.
- Olha cá. Eu não quero nenhum peso a mais no King. Leva-o a sair por alguns dias. E monta-o. Percebeste?
- Sim, pai.
- Corre-o milhas e milhas, e então à vinda em bons caminhos mostra o que vales. Agora, Lucy, mantém os olhos bem abertos. Não deixes que ninguém se aproxime de ti.
- Não deixo. Pai, ainda está preocupado com o desgraçado do Joel Creech?
- Não, não é com o Joel. Mas prefiro perder tudo o que tenho do que deixar que Cordts ou Dick Sears se aproximem de ti. Cordts jurou que se não conseguisse o King,
te apanharia a ti.
- Oh, ele prefere o cavalo a mim!
- Bem, Lucy, tenho a terrível impressão que Cordts não deixará as montanhas a menos que te apanhe a ti e ao King.
- E o pai consente que esse ladrão de cavalos assista às nossas corridas? - exclamou Lucy com ódio.
- Por que não? Cordts deu a sua palavra de que não tentaria nada antes das corridas.
Enquanto Lucy se dirigia ao curral, ia a pensar. Ela poderia dizer por instinto feminino quando o seu pai estava agitado ou excitado. Amava-o, mas havia uma faceta
nele que ela temia. E de algum modo relacionado com essa faceta estava a sua crueldade perante Creech e a sua intolerância perante os vaqueiros que possuíam cavalos
rápidos, e a sua obsessão pelos seus próprios corredores.
A vista dos currais e de King, no entanto, desviaram-lhe a atenção dos seus pensamentos. Estavam ali alguns vaqueiros, entre os quais Farlane, e todos eles a cumprimentaram
com agrado.
- Farlane, o pai disse-me para levar Sage King - anunciou Lucy.
- Bem, estou abismado - disse Farlane, parecendo preocupado e contente ao mesmo tempo. - Eu estou convencido, Miss Lucy, de que não me iria enganar?
- Oh, Farlane! - retorquiu Lucy reprovadoramente.

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Todos os vaqueiros se riram e Lucy acompanhou-os.
Trouxeram o cavalo cinzento e à maneira de vaqueiros, que tratavam de grandes cavalos e os amavam, escovaram-no e acariciaram-no antes de o selar.
- Penso que é melhor levar a sela de Van - sugeriu Farlane. - As corridas estão perto e agora uma sela estranha...
- Claro. Não mude nada a que ele esteja habituado, excepto os estribos - replicou Lucy.
Apesar da sua antipatia por Sage King, Lucy não podia deixar de o olhar sem sentir o orgulho de um cavaleiro. Era elegante, tão gracioso, tão puro-sangue, tão parecido
com o cinzento da planície, tão belo em porte e em movimento. Não gostava muito de Lucy, um factor que talvez tivesse contribuído para a antipatia desta. E também
não gostava de nenhuma mulher.
- Aqui está, acho que os estribos estão bem assim - declarou Farlane. - Agora, Miss Lucy, segure-o bem até chegar àquela orla. Ele precisa de trabalhar.
Sage King não ajoelhava para Lucy como Sarchedon, e era demasiado alto para ela o montar directamente, por isso subiu a uma rocha. Dirigiu-se para a estrada, e
então para o caminho da planície, fazendo tenção de trotar umas dez ou quinze milhas no vale, e fazê-lo correr veloz no regresso.
Era um dia de Maio e prometia tornar-se quente. Não havia uma nuvem no céu azul. O vento, com cheiro a planície, soprava fraco de oeste. A frente de Lucy estendia-se
o vale cinzento, depois azul, depois púrpura ao pé das montanhas e, mais ao longe, negras falésias.
Numa hora Lucy estava já a muitas milhas de casa, nunca tinha estado tão longe dentro do vale. Na verdade nunca tinha estado na longa encosta deste vale. Como
se tornava diferente o horizonte! As montanhas elevavam-se agora, escuras, como se fossem sentinelas misteriosas. A primeira, de rocha vermelha, parecia estar a
cinco milhas de distância. Era esguia, majestosa, com uma encosta verde na sua base. Atrás dessa, outra montanha pairava sobre o vale. Lucy resolveu cavalgar até
à primeira, antes de regressar.
Ali à esquerda, onde as montanhas se tornavam mais espessas, e gradualmente se fundiam nas linhas das suas encostas e se transformavam em paredes amarelas, ela
viu então nuvens de fumo.
- Mas que será aquilo? - pensou ela em voz alta. Ver fumo no horizonte e naquela direcção era raro, embora para os lados de Durango os bancos de erva ardessem frequentemente.
Assim continuou olhando de vez em quando para o fumo. Ao chegar perto da primeira montanha ficou surpreendida, depois pasmada, pelo seu peso e tamanho. Era uma enorme
torre, macia, brilhante, amarela e vermelha. O caminho que ela seguira desembocava num profundo buraco,

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e por detrás dele não encontrou mais nenhum caminho. O ar estava quente, a brisa era pesada e cheirava a fumo, e a areia soprava aqui e ali.
Ela teve a noção da grandiosidade e da abertura deste vale, e depois apercebeu-se do quanto era estranho e selvagem. Estas montanhas isoladas tornavam o local diferente
de todos os que ela já vira.
De repente Sage King parou bruscamente, elevou as orelhas, resfolegou. Lucy estava admirada. Aquilo no King queria dizer qualquer coisa. Rapidamente, com o olhar
aguçado percorreu o solo. A uma milha dali, perto da montanha, estava uma pequena mancha escura. Párou imóvel. Mas o relincho de King provava que era um cavalo.
Quando Lucy já tinha percorrido um quarto da distância que a separava, pôde distinguir o cavalo e a estranha posição em que ele se encontrava. Lucy pôs Sage King
a galope e depressa se aproximou. O cavalo negro tinha a cabeça para baixo, e no entanto não parecia estar a pastar. Estava quieto como uma estátua. Estava mesmo
ao pé de um tufo de cactos.
De repente, um som quebrou o silêncio. King saltou e relinchou de medo. Por um instante, o sangue de Lucy gelou, pois tinha sido um grito horrível. Então ela reconheceu-o
como o grito de um cavalo agonizante. O cavalo negro não se tinha mexido, por isso o som não podia ter vindo dele. Lucy subiu a uma pequena elevação, a cem metros
de onde se encontrava o cavalo negro, e perscrutou o horizonte.
Era um potente, enorme cavalo negro, com a sela demasiado puxada para a frente. Mantinha-se imóvel, como se estivesse completamente exausto. As suas patas estavam
arqueadas, de maneira que estava um pouco inclinado. Então Lucy viu a corda. Estava amarrada à sela e seguia para trás dos cactos. Não havia mais nenhum cavalo à
vista, nem nenhum ser vivo.
Ela hesitou. Sabia que havia outro cavalo no outro extremo da corda. Provavelmente um cavaleiro tinha sido derrubado e talvez estivesse morto. Com certeza que um
cavalo tinha sido ferido. Então, nesse momento, o grito de agonia repetiu-se, só que mais fraco e mais curto. Lucy esporeou King.
Desceu uma pequena encosta, atravessou um buraco, subiu um banco e cavalgou até ao cavalo negro. Sage King precisava de uma mão mais firme do que a de Lucy. Quando
ela o conseguiu acalmar, olhou em volta.
O cavalo negro era sem dúvida enorme. A sua crina, os seus largos flancos, estavam alargados como se tivessem sido batidos por pesados martelos. Ele levantou a cabeça
para olhar para ela. Lucy, acostumada com cavalos toda a sua vida, viu que este lhe dava as boas-vindas. Mas estava quase a cair.
Dois apertados laços partiam da sua sela até uma depressão cheia de cactos e rochas. Então Lucy viu um cavalo vermelho. Estava deitado numa posição má. Ela ouvia
os seus fracos gemidos.

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Provavelmente tinha quebrado as pernas ou as costas. Sage King recusou-se a aproximar-se, e Lucy desmontou.
O cavalo vermelho estava meio escondido por alguns arbustos. Tinha caído num buraco cheio de cactos. Tinha um laço à volta do nariz e outro apertava-lhe o pescoço.
O que lhe rodeava o pescoço também lhe apertava as patas. E ambos os laços estavam bem apertados no cavalo negro. Um forte lenço de vaqueiro caíra-lhe no nariz,
tendo sido seguro pela corda.
Lucy olhou em volta, para trás e para a frente, olhou pela encosta abaixo, mas não viu nada que se parecesse com um ser humano. Então voltou para trás.
Lucy olhou mais uma vez o vermelho garanhão. Ela não acreditava que ele tivesse as pernas ou as costas partidas. Estava apenas estourado, apertado e amarrado com
as cordas, e não se conseguia erguer. O peludo cavalo negro continuava ali firme e indomável. Mas estava quase a cair.
Lucy aproximou-se do garanhão de tal maneira que quase lhe podia tocar. Ele então viu-a. Estava chocado. Espuma e sangue saíam-lhe com gemidos. Ela tinha de fazer
alguma coisa rapidamente. Com a pressa picou-se nos cactos.
Aproximou-se do cavalo, desatando-lhe as cordas. Então baixou-se no
neio das pedras e dos cactos. O cavalo já não estava em má posição,
podia erguer a cabeça. Lucy viu que o laço ainda lhe apertava o pescoço.
Sem medo, desatou-lho. Então recuou, mas não estava fora do seu
alcance. Ele tossia e respirava com dificuldade. Depois relinchou.
- Já estás bem, agora - disse Lucy, encorajadoramente. Lentamente, aproximou uma mão da sua cabeça. Ele desviou-a o mais que pôde. Ela aproximou-se e pôs-lhe a
mão delicadamente. Então, saindo do meio dos arbustos desatou o laço da sela e voltando junto do cavalo tirou-lhe a corda de volta das pernas. Ele estava agora
livre, à excepção da corda do nariz, que estava larga. Lucy esperou ali que ele se levantasse.
No princípio, não fez nenhum esforço nesse sentido. Olhava para Lucy com menos receio do que ela pensava. E ela nem se mexeu. Queria que ele percebesse que ela não
o tinha magoado nem o ia magoar.
Finalmente, com um longo gemido, levantou-se. Lucy conduziu-o para fora do buraco. Ela estava emocionada e espantada.
- Oh, que maravilhoso cavalo selvagem! Que gigante. É maior que King. Ah. se o pai pudesse vê-lo!
O garanhão vermelho não parecia estar ferido. A tremura nos seus músculos devia ter sido causada pelos picos dos cactos. Havia muito sangue num dos lados das suas
costas. Lucy pensou se se atreveria a tirar-lhe estes picos.
Ela caminhou para ele naturalmente e falou-lhe meigamente, levando uma das mãos ao seu dorso.

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- Vá lá. vermelhinho. Vá lá agora. Isso é que é um bom rapaz. Eu nunca te bateria ou amarraria. Eu sou só uma rapariga.
Ele virou-se, fez um esforço visível para saltar, o que ela evitou, e então levantou-se, tremendo, olhando-a, enquanto ela lhe falava ternamente e lhe fazia festas.
Depois, tirou-lhe suavemente um dos picos de cacto. O cavalo vacilou mas aguentou. Os picos foram facilmente removidos. Por fim, ela conseguiu livrá-lo deles, e
estava quase tão orgulhosa como satisfeita. O cavalo tinha deixado cair a cabeça gradualmente: estava cansado e de espírito abatido.
Ela tirou o laço corredio da cabeça do garanhão, deixando-lhe o freio e recolhendo a corda, passou-a por cima da sela do cavalo preto. Então tirou-lhe os arreios.
- Vá lá - chamou.
O cavalo preto seguiu-a e o garanhão, ainda preso a ele pela corda que Lucy lhe tinha atado, seguia atrás de cabeça baixa. Lucy estava extasiada. Mas Sage King não
gostou nada do assunto. Lucy teve de deixar os arreios do cavalo preto e apanhar King, e de novo regressar para apanhar o outro.
Um claro trilho marcava o caminho por onde eles tinham chegado, e conduzia para a esquerda onde as montanhas se adensavam, e aonde se erguiam as grandes paredes
fragmentadas e batidas. Lucy teve dificuldade em segurar Sage King, mas os cavalos seguiam atrás.
Atenta ao trilho, Lucy não reparou no tempo nem na distância até chegar muito perto das estranhas montanhas. Passou a primeira, um monte quadrado e enorme, e o segundo,
com dois cumes ásperos, e então passou por mais dois muito parecidos, que alcançavam o céu de uma forma monstruosa.
Num momento Sage King parou, e a Lucy deparou-se-lhe um homem estendido no chão. Estava inerte. Mas os seus olhos estavam abertos - pretos e observadores. Moveram-se
e ele chamou. Mas Lucy não o conseguiu compreender.
Num salto, desmontou do King. Correu para o homem prostrado, e ajoelhou-se.
- Oh - gritou. A sua face parecia a de um fantasma. - Oh, está muito ferido?
- Levante-me a cabeça - pediu ele com voz fraca. Ela ergueu-lhe a cabeça.
- Rapaz, eles são meus, o preto e o vermelho - gritou.
- São. com certeza - replicou Lucy. - Oh, diga-me, está muito magoado?
- Rapaz, apanhaste-os, foste buscá-los para mim?
- Claro que sim.
- Tu apanhaste o demónio vermelho e trouxeste-o de volta para mim? - continuou na sua voz fraca e vacilante. - Rapaz, ah!, rapaz.

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Ele ergueu um grande e poderoso braço e puxou Lucy. Ela estava indefesa. Ela sentiu a sua cara contra a dele - e a sua respiração contra a dele. O bater do seu coração
era um sopro. No primeiro instante ela quis rir, apesar da sua pena. Então sentiu o braço poderoso, e o contacto afectou-a como nunca nada a tinha afectado.
Lutou tão violentamente que conseguiu libertar-se.
- Olha cá, isso não é maneira de se agir... apertar uma pessoa- gritou com a face em chamas.
- Rapaz, eu...
- Eu não sou nenhum rapaz. Eu sou uma rapariga.
- O quê?
Lucy afastou o seu chapéu, que tinha estado todo puxado para a frente, e revelou a sua cara engraçada, enquanto o cabelo lhe caía pelos ombros. O vaqueiro olhou-a
assombrado. Então, uma leve cor avermelhada coloriu-lhe a face.
- Uma rapariga. Mas... mas, desculpe, miss. Eu... eu tomei-a por um rapaz.
- Claro que sou uma rapariga. Mas isso não tem importância. Você foi derrubado! Está ferido?
Ele sorriu num fraco assentimento.
- Gravemente? - perguntou ela.
- Acho que sim. Não me consigo mexer.
- Oh, que hei-de eu fazer?
- Pode arranjar água? - murmurou ele.
Lucy voou até ao seu cavalo para buscar o pequeno cantil que sempre trazia consigo. Mas deixara-o na sua sela. A que ela trouxera era a de Van. Então olhou em volta.
A nascente que atravessara várias vezes corria perto de onde o vaqueiro se encontrava. Erva fresca e salgueiros rodeavam-na. Correu lá e, enchendo o seu chapéu,
apressou-se a voltar para o pé do homem estendido. Foi difícil dar-lhe de beber.
- Obrigado, miss - disse ele, agradecido.
- Tem algum osso partido? - perguntou Lucy.
- Não sei. Não consigo sentir.
- Dói-lhe alguma coisa?
- Nem por isso. Acho que estou insensível.
- Deixe-me ver se tem alguma coisa partida. Esse braço não está partido, tenho a certeza.
O cavaleiro de novo esboçou um fraco sorriso. Como ele olhava com os seus olhos escuros e penetrantes! A sua face estava lívida por debaixo da barba rala e do bronzeado.
Lucy encontrou o seu braço direito deslocado mas não partido, Certificou-se de que as espáduas e o pescoço estavam intactos. Localizar costelas partidas era mais
difícil, de qualquer maneira, se ele não sentia dores quando ela carregava,

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concluiu que ali não havia fracturas. Com a ajuda dela, moveu as pernas, provando não haver ossos partidos.
- Receio bem que seja a espinha - disse ele.
- Mas já levantou a cabeça - replicou ela. - Se a tivesse quebrado ou ferido, não conseguiria levantar a cabeça.
- Pois não podia. Parece-me que estou apenas fora de combate. Eu... eu estava bastante fraco antes de Wild Fire me bater... me atirar abaixo do Nagger.
- Wild Fire?
- Esse é o nome do garanhão vermelho. Eu... segui-o... dias... semanas... meses. Atravessámos a grande ravina.
- Deve ser isso. A grande ravina é além - apontou Lucy. - Eu moro lá. Veio de muito longe.
- Centenas de milhas. Mas fiquei com Wild Fire. E consegui pôr-lhe a corda. E ele fugiu. E foi um rapaz... não, uma rapariga... que mo salvou... e também salvou
a minha vida.
- Não se incomode comigo. Você disse que estava fraco. Tem estado doente?
- Não, miss. Só a morrer à fome... morria à fome na pista de Wild Fire. Lucy correu para a sua sela e tirou os biscoitos dos bolsos do seu
casaco.
- Aqui tem. Nunca pensei. Oh, deve ter passado um mau bocado! Eu compreendo. Aquela maravilhosa chama de um cavalo. Eu também teria continuado. O meu pai já foi
vaqueiro. Bostil. Já ouviu falar dele?
- Bostil. O nome... conheço. - Então o vaqueiro encostou-se pensativo, enquanto mastigava um biscoito. - Sim, lembro-me, mas já foi há muito tempo. Bostil tinha
um barco, o Crossing of the Fathers.
- Sim. eles chamavam o barco assim.
- Lembro-me bem. Diziam que Bostil não conseguia contar os seus cavalos, que era um homem rico, duro com vaqueiros, e que usara a pistola mais de uma vez.
Lucy baixou a cabeça.
- Sim, esse é o meu pai.
O vaqueiro parecia não ter percebido o quanto a magoara.
- Aqui estamos nós a falar, a perder tempo - disse ela. - Tenho de voltar para casa. Não se pode mover. Que hei-de eu fazer?
- Isso é consigo, filha de Bostil.
- O meu nome é Lucy - replicou a rapariga, corando penosamente. - Eu quero dizer que ficarei contente em fazer o que você achar melhor.
- É muito bondosa.
Então virou a cara. Lucy olhou-o mais de perto. As suas roupas e as suas botas estavam em farrapos. Ele não tinha casaco, nem chapéu, nem colete. A sua face apagada
tinha traços do que teria sido um bom e forte rosto gracioso, mas agora era apenas flácido, magro e digno de dó.

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- Então vou fazer aquilo que acho que é melhor para si - disse lucy. Primeiro tirou a sela ao negro Nagger. Com a sela fez uma almofada para a cabeça do vaqueiro
e cobriu-o com o cobertor.
- Vou dar água aos cavalos... e então ato aqui Wild Fire com uma corda dupla. Aqui há erva.
- Mas não o consegue trazer - replicou o cavaleiro.
- Ele segue-me.
- Aquele demónio vermelho. - O cavaleiro tremia enquanto falava. Lucy fazia uma vaga ideia do que tinha sido a terrível luta entre
cavalo e homem.
- Sim. quando eu o encontrei estava abatido. Olhe para ele agora. Mas o vaqueiro não mostrou vontade de ver o garanhão. Olhou para
lucy. e ela viu nos seus olhos qualquer coisa que a fez lembrar uma criança.
Ela deixou-o. não teve nenhuma dificuldade em dar de beber aos cavalos, atou Wild Fire entre os salgueiros num tufo de erva. Então regressou.
- Vou-me embora agora - disse ela para o vaqueiro.
- Para onde?
- Para casa. Amanhã voltarei cedo. e trarei alguém para ajudar.
- Rapariga, se me queres ajudar mais, traz-me pão e carne. Não digas a ninguém. Olha para o farrapo que eu estou. E depois há Wild Fire. Não quero que ninguém o
veja até eu estar de novo em pé. Eu conheço os vaqueiros. Se quer ser amável, venha.
- Virei - replicou Lucy, simplesmente.
- Obrigado, eu devo-lhe muito. Tem a certeza que atou bem Wild Fire?
- Sim. tenho a certeza. Agora vou-me embora. Espero que amanhã esteja melhor.
Lucy hesitou com a mão no arreio de King. Não lhe agradava deixar este jovem indefeso no deserto. Estava tão preocupada, que se esqueceu que lhe era necessário subir
a uma pedra para montar em King. Depressa se apercebeu quando o tentou fazer. Então conduziu-o pela pradaria até que encontrou uma pedra.
Montando, voltou directamente através do campo, tencionando cortar algumas milhas de caminho que teria de percorrer se tomasse o mesmo caminho. Olhou uma vez para
trás. O cavaleiro não estava à vista, o cavalo negro Nagger também não era visível, mas Wild Fire, brilhando à luz do Sol, observava a sua partida.

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CAPÍTULO IX

OS PREPARATIVOS DE UMA GRANDE CORRIDA


Depressa deixou a região das montanhas e de novo se encontrou no terreno do vale. De tempos a tempos tinha o desejo de olhar para trás. Ela sentia-se contente e
surpreendida por ter chegado a um caminho onde reconheceu as marcas que havia deixado. Com grande alívio, virou Sage King para esse caminho, e então toda a ansiedade
que sentira desapareceu.
Conduziu King a trote longo. Era difícil segurá-lo se ele não fosse a trote, e depois de milhas e milhas, quando achou melhor abrandar-lhe a marcha, ele quase que
lhe deslocou os braços. Por fim, conseguiu dominá-lo. Então seguiram-se algumas milhas lentas e monótonas. A casa estava atrás do vale, cuja encosta só podia ser
vista à distância. Aqui havia um caminho macio e direito, nem muito mole nem muito duro.
Lucy abaixou-se para verificar se o estribo estava amarrado, e então enterrou o chapéu, sacudiu o arreio e deixou King ir. Este, tal foi a surpresa, quebrou o passo.
Como cavalo cauteloso que era, começou a galopar brandamente para ver o verdadeiro significado desta liberdade.
- Afinal, que se passa contigo? - disse Lucy, desdenhosamente. - Estás com preguiça? Ou não acreditas que eu me aguente?
Então carregou-lhe com as esporas. Sage King relinchou. Esta acção resultou às mil maravilhas. Os seus cascos troavam. E passou desse barulho para o seu passo quase
esvoaçante, em que o bater dos cascos eram abafados, regulares e ritmados.
Lucy guiava-o com os dentes e os punhos cerrados, toda curvada. Ele ia tão depressa que o vento a cegava. O caminho era apenas um fio branco numa mancha cinzenta.
Então sentiu o espaço que diminuía. Sage King tinha corrido, e as milhas iam ficando para trás. Gradualmente, a sua vista foi-se aclarando, e à medida que o cavalo
quente e molhado abrandava, satisfeito com a sua corrida selvagem, Lucy deu conta que se encontrava na encosta a poucas milhas de casa.
De repente, pareceu-lhe ver qualquer coisa escura sair de trás de um arbusto ali em frente. Antes que pudesse mover uma mão do arreio, Sage King ergueu-se com um
relincho assustado. Foi uma tremenda e repentina travagem. Ele ergueu-se alto. Lucy ficou de pé, mas compôs-se de qualquer maneira e. descendo com ele, encontrou
a sela. E pareceu-lhe, enquanto no ar, ver um longo e corredio bocado de corda aparecer e fechar-se mesmo no sítio onde as patas de Sage King se haviam levantado.
Ela gritou. O cavalo começou a correr. Lucy, endireitando-se, olhou para trás e viu Joel Creech segurando um laço corredio. Ele tinha tentado laçar King.

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Lucy nunca na sua vida se sentira tão furiosa como naquele momento.
Joel abanou o punho na sua direcção gritando:
- Eu ter-te-ia apanhado... em qualquer outro cavalo.
Ela não respondeu, embora tivesse de lutar para não puxar da sua arma e o alvejar. Guiou o cavalo de volta ao caminho, deixando num instante Creech fora de vista.
Conduziu King directamente para os currais, e ele continuava veloz quando virou do prado para os celeiros. Então ela puxou-o.
Farlane estava lá e foi ao encontro dela. Lucy não viu mais nenhum vaqueiro e ficou contente.
- Bem, Miss Lucy, King está com bom aspecto - disse Farlane, enquanto ela saltava e lhe atirava o arreio. - Ele teve o suficiente... Diga lá, menina... está tão
pálida. Oh, não me diga que teve medo do King?
- Joel Creech apareceu-me ali na planície... e... e tentou apanhar-me.
- Lucy reconsiderou. Era melhor não contar como Joel a tinha tentado apanhar.
- Ele fez isso? Consigo no King? - Farlane riu como que aliviado.
- Bem, ele já o tinha tentado, Miss Lucy. Mas montando este cinzento... Isto mostra como Joel é maluco.
- É com certeza. Farlane eu... eu estou furiosa.
- Bem, acalme-se, Miss Lucy. Não se preocupe com isso. E não diga nada ao velhote.
- Por que não? - perguntou Lucy.
- Bem, porque ele tem andado um pouco maldisposto. Não é nada seguro. Ele odeia os Creech. Por isso não lhe diga nada.
- Está bem, Farlane. Eu não digo. Não lhe digas tu também - replicou Lucy, sombriamente.
- Com certeza que me calarei. Mas se Joel não tem cuidado, ainda o esmago.
Lucy apressou-se e não encontrou ninguém. No seu quarto mudou de roupa e deitou-se para descansar e pensar.
Mais tarde, deixou o quarto para arranjar um pacote de mantimentos para o vaqueiro. A sua tia estava ocupada na cozinha e Bostil ainda não regressara. De qualquer
maneira, esta tarefa agradou-lhe. Recordou a face esguia do cavaleiro, e isso fez-lhe lembrar o seu aspecto esfarrapado. Por que não arranjar-lhe um pacote de roupas?
Bostil tinha um quarto cheio de acessórios para os seus homens. Ela correu a esse quarto, e com mãos destras e pensamento sensato seleccionou um equipamento para
o cavaleiro, guardando uma lâmina para a barba. Tudo isto ela transportou rapidamente para o seu quarto, onde juntou um pedaço de espelho partido, sabão e uma toalha.
Então atou um segundo pacote.
Bostil não regressou para o jantar, o que deixou a tia de Lucy furiosa. Comeram sozinhas e já era muito tarde quando levantaram a mesa.

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Depois disso, Lucy, aproveitando o crepúsculo, carregou os dois pacotes para fora, para a planície e deixou-os perto do caminho.
Apressou-se a voltar para casa e chegou até à sala sem ser observada. As lâmpadas estavam acesas e um tronco ardia. Ela estava a ler quando Bostil entrou.
- Olá, Lucy - disse ele.
Parecia cansado, e Lucy sabia que ele tinha estado a beber, pois sempre que bebia nunca a beijava. Uma sombra estranha continuava a toldar-lhe o rosto, mas iluminava-se
de alguma maneira quando a via. Lucy cumprimentou-o como sempre.
- Farlane disse-me que seguraste King maravilhosamente... melhor do que Van tem feito ultimamente - disse Bostil. - Lucy, tu levas King todos os dias por um bocado.
Monta-o, mas tem cuidado! Joel Creech esteve hoje na vila. Ele sem dúvida que esperneou quando me viu. Anda a tramar alguma maldade.
Lucy não sabia o que dizer. Bostil desejou-lhe as boas noites. Lucy esforçava-se por ler. mas o seu pensamento vagueava continuamente pelos acontecimentos do dia.
Na manhã seguinte teve dificuldade em controlar a sua impaciência, mas a sorte favoreceu-a. Bostil não estava por perto e Farlane, pela primeira vez, não podia perder
mais tempo do que o necessário para selar King. Lucy cavalgou até à planície, com a certeza de que ninguém a observava.
Ela tinha escondido os pacotes perto do arbusto mais alto do caminho e quando parou por trás dele não teve receio de que a pudessem ver dos currais. Apanhou os embrulhos.
O mais leve não foi difícil de atar na parte traseira da sela, mas o maior já foi um caso diferente. Decidiu-se a levá-lo na sua frente. Ali perto havia uma rocha
de tamanho ideal, sobre a qual subiu, levando Sage King. e depois de uma hesitação montou-o segurando o pacote.
Então partiu levando o embrulho no regaço. O problema era que Sage King não era nada dado a passo lento e até o seu caminhar era veloz. E Lucy era obrigada a segurá-lo
nesse passo. Ela queria apressar-se, mas isso estava fora de questão.
Era difícil segurar o embrulho, e Sage King impacientava-se com a monotonia do passeio. As horas passavam. O sol tornou-se quente. Era quase de tarde quando ela
atingiu o ponto onde havia cortado para a esquerda. A partir daí, com as montanhas erguendo-se cada vez mais altas e com a distância a diminuir perceptivelmente,
os minutos passavam com menos monotonia.
Por fim, atingiu a zona de rochas imponentes. Cavalgou por entre elas e ficou feliz quando viu as colunas de pedra - as suas marcas. Por fim, avistou o regato rodeado
por uma vegetação verde e pelos escassos cedros. Então, um cavalo brilhou vermelho em contraste com a planície, e outro preto apareceu.

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Antes de chegar aos cedros, viu um homem. Ele deu alguns passos lentos para fora da sombra. Tinha as costas curvadas. Lucy reconheceu o cavaleiro e no seu contentamento
por o ver de pé, gritou-lhe. Então, quando Sage King atingiu o local, Lucy atirou o pacote para o chão.
- Ah. isto deu-me que fazer - gritou ela.
O cavaleiro olhou-a com uns olhos que lhe pareceram mais aguçados e menos parados do que lhe haviam parecido.
- Sempre veio? Estava com receio que não aparecesse - disse ele.
- Claro que vim. Está melhor? Não está ferido? - disse ela com gravidade. - Estou tão contente.
- Tenho uma dor nas costas, é tudo.
Lucy depressa verificou que, depois de olhar para ela, ele era todo olhos para Sage King. Riu-se. Saltando, atirou o arreio e depois, desatando o segundo pacote,
deixou-o cair.
O vaqueiro aproximou-se de Sage King com passos dolorosos e lentos e com as costas curvadas, pousou-lhe a sua mão forte, esguia e bronzeada, tocando-lhe como se
o quisesse sentir bem real. Então assobiou impressionado. Quando se virou para Lucy, os olhos brilhavam-lhe com uma luz magnífica.
- É o Sage King. O favorito de Bostil - disse Lucy.
- Sage King. Assim o parece... Mas nunca foi selvagem?
- Não.
- Um óptimo cavalo - replicou o cavaleiro. - Claro que pode correr? Lucy riu-se.
- Correr! King é o favorito de Bostil. Ele pode ultrapassar qualquer cavalo de toda esta zona.
- Aposto que Wild Fire lhe ganha.
- Ande lá - gritou Lucy, desafiadoramente.
Então o cavaleiro e a rapariga olharam um para o outro francamente. Ele sorriu de uma maneira que lhe mudava as feições - iluminava-lhe a dureza do rosto.
- Acho que vou ter de o provar - disse ele. - Mas talvez possa montar daqui a uns dias... se você voltar de novo.
O seu reparo trouxe a Lucy a ideia de que seria difícil tornar a ver o vaqueiro a partir daquele dia. Sentiu uma confusão estranha.
- Eu... eu trouxe-lhe... algumas coisas - disse ela. apontando para o pacote maior.
- Eu só lhe pedi comida, miss - disse ele.
- Oh, sim... mas eu pensei. - Lucy tornou-se extremamente embaraçada. - As suas roupas estavam tão estragadas... e não admira que tenha sido derrubado... com essas
botas. Assim... eu pensei... eu... oh, não vai recusar. Por favor...
A sua face adoçou-se.
- Recusar? Claro que não.

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Ele tentou apanhar o pacote do chão, mas como era visível o esforço doloroso em se abaixar, Lucy apanhou-o.
- Mas ainda não tomou o pequeno-almoço - protestou ela. - Por que não come antes de abrir o pacote?
- Não, não tenho fome. Talvez coma qualquer coisa depois de me vestir. - Afastou-se em passo lento e curto e desapareceu por detrás dos salgueiros.
Lucy recolheu a corda da sua sela e atou Sage King na melhor erva que havia ali perto. Então abriu o pacote dos mantimentos, pensando entretanto que não se podia
demorar muito por ali.
O pacote continha frutas secas, carne e pão, uma boa provisão de coisas para comer de longa duração, algo estragadas pela longa caminhada. Ela espalhou tudo isto
à sombra do cedro. Os utensílios eram escassos - duas chávenas, duas panelas e um pote fino. Apanhou lenha e preparou uma fogueira.
Por fim, pensou no garanhão vermelho e apressou-se a ir vê-lo. Ele estava a pastar. Tinha perdido aquele ar poeirento e sujo. Quando a viu, levantou a cabeça e resfolgou.
Lucy aproximou-se fascinada de Wild Fire.
- Não é que ele me conheceu? - gritou ela.
Lucy aproximou-se dele e pôs-lhe a mão. Wild Fire relinchou um pouco e estremeceu, mas tudo isto desapareceu debaixo do seu toque. Ele ergueu a cabeça muito alto
e olhou-a com os seus olhos maravilhosos. Gradualmente, ela puxou-lhe a cabeça para baixo. Ao pé dele, cuidadosamente, mudou-lhe a corda de posição, pois já lhe
tinha feito um golpe no nariz.
Parecia ser a boa sorte que fazia que qualquer gesto que ela fizesse a este garanhão fosse para o aliviar de dores. Lucy sabia estar a salvo quando desatou a corda
da árvore onde o tinha amarrado e o levou até a um poço de água. E ficou ao pé dele, com uma mão no seu lombo enquanto ele se baixava para beber. Lucy tornou a levá-lo
para um lugar fresco e amarrou-o com segurança.
Quando regressou ao acampamento, o cavaleiro já lá estava, de joelhos, acendendo a fogueira. A sua face bem barbeada e as roupas tinham-no tornado bastante diferente.
"Era jovem, e se não estivesse tão magro pareceria muito elegante", pensou Lucy.
- Wild Fire lembra-se de mim - gritou ela. - Não estava nada assustado. Deixa-me guiá-lo. Seguiu-me até à água.
- Ele afeiçoou-se - replicou o cavaleiro muito sério. - Já tinha ouvido falar de casos desses, mas não tão depressa. Ele estava muito mal quando ontem o foi buscar?
Lucy explicou-lhe.
- Ah! Se aquele demónio vermelho tem algum amor dentro dele eu nunca o obterei. Quem me dera ter feito isso por ele. Mas ele lembrar-se-á cada vez que me vir.

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Lucy viu que o vaqueiro não conseguia dobrar as costas, e era-lhe doloroso tentar.
- Deixe que eu faço isso - disse ela.
- Obrigado. Fiquei quase sem forças a vestir o novo equipamento
- disse ele, cedendo o seu lugar a Lucy.
- Teve algum problema em esconder a minha existência? - perguntou ele.
- Não. Mas a verdade é que estes pacotes me deram muito trabalho
- replicou ela.
- Deve ser óptima a cavalgar.
- Bem, o pai, Holley e Farlane discutem muito acerca de mim. Mas de qualquer maneira acho que todos concordam que sei montar.
- Holley e Farlane são vaqueiros? - perguntou ele.
- Sim, os braços-direitos de meu pai.
- Será que ele me daria emprego? Lucy olhou-o. A ideia surpreendeu-a e agradou-lhe.
- Num instante - replicou ela. - E será generoso consigo. Está a ver. Ele manteria um olho em Wild Fire.
Ele permaneceu silencioso, e Lucy, ocupada com a fogueira, não tornou a falar até que a pequena refeição ficou pronta. Então, estendeu uma lona na sombra.
Começaram a comer. A excitação de Lucy, o sentido de irrealidade desta aventura, não lhe tiraram o apetite.
- Não posso ficar muito tempo - disse ela, lembrando-se de repente.
- Voltará de novo? - perguntou ele. A pergunta surpreendeu Lucy.
- Bem... eu não sei. Você não vai até à aldeia assim que possa montar?
- Acho que não.
- Mas é o único sítio em centenas de milhas que tem pessoas. Certamente não irá regressar por onde veio.
- Quando Wild Fire deixou aquela região, eu também a deixei. Nós não podemos voltar.
- Quer dizer, então não tem ninguém? Ninguém que se preocupe?
- Ninguém. Sou órfão. A minha gente morreu num massacre índio num vagão que atravessava o Wyoming. Poucos escaparam, e eu fui um dos mais novos. Tive uma vida dura.
Como um cão vadio, até que cresci. E então optei pelo deserto.
- Oh, estou a ver... lamento muito - replicou Lucy. - Que vai agora fazer?
- Ficarei aqui até que as minhas costas melhorem. Aparecerá de novo?
- Sim - respondeu Lucy, sem o olhar. Então ele interrogou-a acerca do rancho e de Bostil, e da aldeia, e
acerca dos vaqueiros e dos cavalos. Lucy contou-lhe tudo o que sabia

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e o que se lembrou, e depois de elogiar os cavalos dali, particularmente os de Bostil, deu-lhe uma descrição de Cordts e Dick Sears.
- Ladrões de cavalos - exclamou sombriamente o vaqueiro. - Onde costuma estar esse bando?
- Ninguém sabe. Holley diz que eles se escondem na região da ravina.
- Não há nenhuns caçadores no rancho?
- Quer dizer, caçadores de cavalos selvagens?
- Não. Caçadores de ursos e veados.
- Não há nenhum. E é por isso que a zona da ravina selvagem não nos é familiar. Eu gostava de lá ir e acampar. Mas a nossa gente não vai nisso. Eles gostam dos espaços
abertos. Ninguém que eu conheça, a não ser um rapaz meio maluco, cavalgou até aqui a estas montanhas. E que maravilha de lugar! Não deve distar de casa mais de vinte
milhas. Eu tenho de ir andando. Estou-me a esquecer de Sage King. Já lhe disse que o estou a treinar para as corridas?
- Não. não disse. Que corridas? Conte-me - replicou ele, com visível interesse.
Então Lucy falou-lhe da grande paixão de seu pai - do antigo e tradicional costume de correr, das grandes corridas realizadas no passado; acerca dos Creech e dos
seus cavalos rápidos; acerca da rivalidade, da especulação, e por fim acerca das corridas que se realizariam dali a umas semanas - corridas tão desejadas que até
Cordts pedira autorização para assistir.
- Eu vou ver King bater o malhado do Creech - gritou o cavaleiro com as faces coradas e um brilho nos olhos.
O seu entusiasmo aqueceu o interesse de Lucy. Suponham que Wild Fire entraria nas corridas. Era provável que os vencesse a todos - até King. Lucy estava cada vez
mais entusiasmada. Que surpresa que seria! Então, de repente, todas estas ideias se uniram num arrojado e agradável pensamento.
- Deixa-me montar o seu Wild Fire na grande corrida? - gritou de um fôlego.
A sua resposta foi instantânea - um sorriso penetrante, doce e forte e uma mão levantada. Impulsivamente Lucy agarrou aquela mão com as suas.
- Não está a falar a sério - disse ela. - Oh, isto é o que a tia chamaria um dos meus sonhos selvagens. E eu estou a crescer- dizem eles. - Mas... oh, se eu pudesse
montar Wild Fire nas corridas... se eu pudesse.
- Pode montá-lo. Eu acho que desejo tanto como Bostil ou Cordts ou qualquer outro assistir a essas corridas. E olha cá, rapariga, Wild Fire pode vencer este enorme
cinzento de teu pai. Ainda está para nascer o cavalo que vença Wild Fire.
- Como é que vamos combinar? - continuou impulsivamente Lucy. Ela tinha-se esquecido de retirar as suas mãos das dele.

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- Tem de ser uma surpresa. Se tu fosses para a aldeia, deixaria de ser segredo. E o pai e Farlane arranjariam maneira de me impedirem.
- É fácil. Vens até aqui sempre que possas. Trazes uma sela leve e deixas-me pôr-te no Wild Fire. Tu corres, treina-lo e põe-lo em forma. Então, no dia das corridas
ou na noite anterior, eu vou e escondo-me na planície até que tu chegues para vir buscar Wild Fire.
- Oh, será maravilhoso! - gritou ela.
- Bem, está combinado? - perguntou o vaqueiro de um modo estranho. O tom dele levou-a a cair em si.
- Quer dizer que eu vou montar Wild Fire? - perguntou timidamente. - Sim, se me deixares.
- Ficarei muito orgulhoso.
- És muito bom. E achas que Wild Fire vencerá King?
- Tenho a certeza.
- Mas será uma grande corrida.
- Assim o suponho. A única questão é se conseguirás montá-lo?
- Sim, não há nenhum cavalo que eu não consiga montar.
- Então, está combinado. Eu acampo aqui. Daqui a uns dias já estou bom. Então ocupar-me-ei de Wild Fire. Tu vens montá-lo sempre que ossas, sem ser vista. E nós
os dois treinaremos esse garanhão para ganhar essa corrida.
- Sim, está combinado.
O entusiasmo de Lucy era alimentado pelo do vaqueiro. Parecia que se conheciam há muito tempo.
- Como te chamas? - perguntou ela.
- Lin Slone - respondeu ele. Então ela libertou-lhe as mãos.
- Tenho de voltar. Se isto não é um sonho eu voltarei em breve. - Conduziu Sage King a uma pedra e montou-o.
- É bom ver-te aí em cima - comentou Slone. - E esse esplêndido cavalo. Ele sabe que o é. Vai partir o coração a Bostil, vê-lo derrotado.
- O pai vai sentir-se mal, mas isso vai-lhe fazer bem - replicou Lucy. Slone acercou-se de King, pondo uma mão na sela, olhou para Lucy.
- Talvez... isto não passe de um sonho... e tu não voltes - disse ele com voz insegura.
- Então virei em sonhos - rebateu ela. - Tem cuidado contigo.
Adeus.

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CAPÍTULO X

Wild Fire SERÁ TEU


Quinze dias passaram voando. Lucy montava Sarchedon pela planície até às montanhas, com o dia por sua conta. Bostil metia-se cada vez mais consigo, um facto que
a preocupava, embora não pensasse muito nisso. Van retomara o treino de Sage King. e Lucy tinha discutido com ele propositadamente para poder estar livre e cavalgar
onde lhe apetecesse.
Aconteceram várias coisas na aldeia que teriam preocupado Lucy consideravelmente se ela não estivesse superocupada e excitada com os seus próprios assuntos. Alguém
fizera uma emboscada a Bostil nos campos de algodão perto de sua casa, e disparara contra ele falhando por pouco. Bostil jurou ter reconhecido o tiro como sendo
de espingarda, e disse saber a quem pertencia. O rio continuava baixo. O barco ainda não tinha sido reparado. E os cavalos de Creech continuavam na outra margem.
- Oh. eu não devia ir - disse ela alto. Mas não desviou o rumo a Sarchedon. Ela repetia centenas de vezes que não devia voltar às montanhas. Lin Slone estava terrivelmente
apaixonado por ela.
Não era isso, repetia ela, mas as montanhas e o lindo Wild Fire que a tinham enfeitiçado de tal maneira que não resistia. Mas nessa manhã Lucy foi assaltada pela
primeira dúvida a seu respeito. Uma vez considerada essa dúvida tornou-se clara. E então reconheceu que gostava de Slone como de um irmão.
Estremeceu. Estava furiosa consigo mesma. Esporeou Sarchedon apressando-o e trotou pela pastagem até ao vale, fazendo-o correr como nunca. Então fê-lo parar, e,
penitente, afagou-o, apercebendo-se da sua imprevidência.
Lucy viu que a sua impulsividade se tinha transformado em audácia. Tinha ido longe de mais. Passara muitas horas sozinha com um vaqueiro, para sua desgraça. Não
tinha desculpa. Estava envergonhada. Que diria ele quando ela lhe dissesse que não o poderia tornar a ver? Este pensamento tornou-a fraca.
Lin Slone mudara o acampamento e escolhera um sítio mais elevado onde as grandes paredes se haviam fragmentado. Estava situado entre alguns cedros que rodeavam uma
nascente.
Lucy não se aproximou pelo trilho circundante que usara na primeira vez que visitara Slone. Ele tinha descoberto uma abertura na parede, e utilizando esse caminho,
Lucy poupava algumas milhas.
Nessa manhã ela espiava Slone no seu poleiro, numa enorme pedra que caíra das grandes paredes. Ela costumava olhar para ver se ele estava ali, e via-o sempre.
Ela acenou-lhe com a mão e ele respondeu-lhe. Então, ao alcançar a parte dos cedros,

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perdeu Slone de vista. Fez Sarchedon correr pela areia dura e chegou antes que Slone tivesse saltado do seu poleiro.
Lucy desmontou relutantemente. Que iria ele dizer do seu fato de montar? A saia fazia-a mais feminina.
- Olá, Lin - disse ela.
- Bom dia, Lucy... - foi a lenta resposta. "Ele olhava-a", pensou ela, "com olhos diferentes."
Slone olhou-a durante tanto tempo, que Lucy não conseguiu manter-se calada. Riu-se.
- Que tal me achas com isto?
- Gosto muito mais assim - disse Slone, rudemente.
- Foi a tia que o fez... e tem andado a convencer-me a usá-lo.
- Torna-te diferente, Lucy. Mas podes montar bem?
- Receio que não. Que irá Wild Fire pensar de mim?
- Ele também gostará mais assim.
Lucy tirou a sela a Sarchedon e soltou-o para pastar, enquanto Slone ia à procura de Wild Fire.
Lucy olhou à sua volta para as imponentes e vermelhas paredes e para trás para as grandes avenidas do deserto.
Esta sua aventura depressa iria findar, pois o dia das corridas aproximava-se e depois disso era óbvio que não teria ocasião de tomar a ver Slone. Pensar que não
voltaria ali fez Lucy estremecer.
Slone regressava com Wild Fire. O garanhão brilhava como uma chama à luz do Sol. O seu medo e ódio por Slone estavam visíveis na maneira como lhe obedecia. Slone
tinha-o ensinado, e teria de manter um pulso firme.
Mas Wild Fire tornou-se um cavalo diferente quando viu Lucy. Cada dia que passava, Slone amava-o cada vez mais e tentava ganhar um pouco do amor que Wild Fire mostrava
quando via Lucy. De qualquer maneira, Slone orgulhava-se do controlo que Lucy exercia sobre o garanhão. Primeiro ela montara-o em pêlo, mas depois puseram-lhe uma
sela.
Era um sério problema treinar Wild Fire. e Slone tinha as suas ideias acerca do assunto.
Lucy passeava-o para cima e para baixo no caminho até ele aquecer. Então, Slone montava Sarchedon. Ele partia à frente de Lucy e corriam ao longo do trilho. O percurso
era de areia batida. Veloz como era Sarchedon, e cavaleiro incomparável como era Slone, a corrida acabava quase no começo.
Wild Fire queria correr e o outro cavalo tornava-o violento. Como uma rocha, Lucy mantinha-se curvada no seu pescoço, e tão leve que ele não teria dado conta que
a levava, se ela não lhe estivesse sempre a falar aos ouvidos. Lucy nunca o esporeava.
Nesse dia ela fugiu a Slone. e virando no fim do trilho de duas milhas

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que tinham marcado, fez Wild Fire regressar. Slone voltou com ela e depressa estavam no acampamento.
Slone desmontou, desviando Sarchedon, e então dirigiu-se aonde Lucy estava a acalmar Wild Fire. Parou um momento a olhar para ela, mas quando ela o viu, avançou
e aproximou-se, enquanto ela se sentava na sela.
- Passaste por mim como uma bala - disse ele.
- Oh, como ele corre! - murmurou Lucy.
- Ele hoje teria vencido King?
- Sim, teria. Eu sei... que teria - respondeu Lucy.
- Sem dúvida que o sabes montar- replicou Slone. - Não consigo ver uma falha, nem nele, nem na maneira como o seguras. De qualquer modo, tu e Wild Fire formam um
conjunto. Não podes ser vencida.
- Eu monto-o... bem? - perguntou Lucy, ansiosamente.
- Eu não o poderia montar melhor.
- Oh, Lin, tu só estás a querer ser simpático. Nem Van monta como tu.
- Não importa, Lucy - disse Slone -, tu montas este cavalo na perfeição.
- Que irá o pai dizer, e Farlane, e Holley, e Van? Oh, eu vencerei o Van! Estou louca por passar pelos vaqueiros e pelos rancheiros, antes das corridas, só para
ver a cara deles - disse Lucy.
- Não, Lucy. O melhor é surpreendê-los. Inscreve o teu cavalo na corrida, mas não apareças antes de estarem todos na linha de partida.
- Sim, é melhor. E Lin, só faltam cinco dias, cinco dias.
- Claro, só mais cinco dias - repetiu Slone, lentamente. - Alguém lá no rancho sabe que tu te vens encontrar comigo? - perguntou subitamente.
- Só a tia. Eu disse-lhe no outro dia. Ela tinha andado a observar-me. Já andava a pensar coisas. Por isso eu contei-lhe.
- E que disse ela? - continuou Slone, curioso.
- Ficou furiosa - respondeu Lucy. - Ralhou-me. Mas eu obriguei-a a não dizer nada a ninguém.
- Eu quero saber o que ela disse - disse Slone, decididamente. Lucy corou, e foi a consciência da sua confusão assim como o tom de
Slone que a fizeram zangar.
- Ela disse que quando descobrissem iria haver uma grande confusão na aldeia. Toda a gente falaria. A tia disse que eu já era uma rapariga crescida. Oh! - E continuou:
-- Disse que o pai iria matar-te. E se ele não o fizesse um dos vaqueiros o faria. Oh, Lin, foi perfeitamente ridícula a maneira como a tia falou!
- Eu acho que não - replicou Slone.- Receio bem ter errado em te deixar vir aqui.
- Isso só a mim diz respeito - declarou Lucy, alterada. - E acho melhor deixarem-te em paz.

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- Lucy, não tenho qualquer dúvida quanto ao que vou fazer quando encontrar Bostil - disse Slone.
- Que queres dizer? - Lucy estremeceu um pouco.
Havia uma severidade e uma dignidade em Slone totalmente desconhecidas.
- Eu peço-lhe para me deixar casar contigo.
- Disparate - cortou ela.
- Eu acho que é a única alternativa - replicou Slone -, mas o meu motivo não é...
- É. Tu só me conheces há alguns dias... o pai vai ficar furioso. E se Wild Fire vence King! Nem é bom falar!
- Quando Wild Fire vencer King, e não se! - corrigiu Slone.
- O pai vai ficar perigoso - avisou Lucy. - Por favor, não lhe digas isso. Então toda a gente saberá... eu... eu... tu... tu.
- Talvez não tenhas percebido - começou ele, e a sua voz tremia.
- O meu pedido a Bostil, não quer dizer que eu tenha alguma esperança, é só para toda a gente saber que pedi.
- Mas o pai... toda a gente... vai pensar que tu pensas haver razão... para eu... para tu teres de pedir - explodiu Lucy, toda corada.
- Claro que vão - replicou ele.
- Lin Slone, nunca te perdoarei se pedires isso ao pai - declarou Lucy.
- Suponho que isso não é muito importante.
- Oh, não te importas! - Ela tentou controlar-se para poder pensar.
- Por favor, não fales ao pai. - Pôs uma mão no braço de Slone, enquanto ele se aproximava de Wild Fire.
- Acho que vou - disse ele.
- Lin. - Naquela palavra havia uma intimidade que até ali ela não lhe havia concedido.
Ele pôs uma mão trémula na dela e cruzou os dedos. Lucy pressionou-lhe a mão.
- Lin, promete não falares ao pai.
- O quê? - perguntou ele, incrédulo.
- Lin, se tu falares com o pai, então ele vai saber, e não haverá nenhuma esperança para ti - gritou ela, com convicção.
Se Slone compreendeu o sentido das suas palavras, não acreditou.
- Eu vou ter com Bostil, depois das corridas e peço-lhe. Está decidido
- declarou Slone.
Depois disto Lucy acabou por perder a cabeça.
- Oh. que tolice... és um tolo! - gritou ela.
Slone recuou como se lhe tivessem batido, e um raio de sangue cobriu-lhe a cara.
- Não. parece-me que é o que tenho de fazer. Lucy atirou-lhe o arreio.

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- Eu não montarei o teu cavalo na corrida - declarou apaixonadamente. Sentia-se toda a tremer.
- Lucy Bostil, eu gostava de estar tão certo de ir para o céu, como estou de que tu vais a essa corrida - disse ele.
- Eu não montarei o teu cavalo.
- O meu cavalo. Ah, já percebi... mas montarás Wild Fire?
- Não.
Slone empalideceu de repente e os seus olhos chisparam fogo.
- Tu não poderás evitar montá-lo, nem eu poderei.
- Conheces-me bem, Lin Slone - retorquiu Lucy sarcástica. - Eu sei ser... tão cabeça dura como tu.
Slone controlou o seu génio, embora a sua face continuasse pálida. Até lhe sorriu.
- Tu amas Wild Fire. E esse garanhão... esse assassino de cavalos, ele segue-te, ele relincha, ele corre como o vento ao teu encontro, ele ama-te.
- Nunca. Nunca mais montarei o teu Wild Fire - disse ela muito baixo.
- O meu. Então é esse o problema. Bem, Wild Fire não será meu quando o levares às corridas.
Slone avançou ao seu encontro, e Lucy recuou até a um cedro, não podendo recuar mais. Ele estava lívido. O coração de Lucy deu um salto, pois pensou que Slone a
iria apertar nos braços. Mas ele não o fez.
- Quando montares Wild Fire nessa corrida, ele será teu - disse Slone com os olhos a chisparem.
- Tu... dás-me... Wild Fire! - gaguejou Lucy.
- Sim, agora mesmo.
A face lívida do vaqueiro e os seus olhos pretos reflectiam o enorme sacrifício.
- Lin Slone, não te consigo entender.
- Tens de montar Wild Fire nessa corrida. Tens de vencer King. Assim dou-te Wild Fire. E agora não podes deixar de correr.
- Por que... por que mo dás? - gaguejou Lucy.
- Porque tu amas Wild Fire. E Wild Fire ama-te. Se isso não é suficiente, então porque eu amo-o, como nunca nenhum homem amou um cavalo. E amo-te, como nunca nenhum
homem amou uma rapariga.
A cabeça dela tombou. Ela sabia estar a tremer como uma folha, sem forças para controlar os músculos. E de súbito encontrou-se sentada aos pés do cedro, chorando
e cobrindo a cara com as mãos.
- Não há razão para chorares - ia dizendo Slone. - Mas desculpa, se te magoei.
- Por favor, vais buscar Sarch?- perguntou Lucy, tremulamente. Slone trouxe Sarchedon. Lucy pôs-lhe os arreios e montando o cavalo
levou um momento a arranjar as saias antes de olhar para Slone.
- Lin, não aceito Wild Fire - disse ela.

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- Sim, aceitas. Não podes recusar. Lembra-te que ele cresceu para te olhar. Não seria justo para o cavalo.
- Mas ele é tudo o que tens - protestou ela. No entanto sabia que os seus protestos seriam inúteis.
- Não. Eu tenho o velho e fiel Nagger.
- Supõe que não o aceito.
- Como o podes recusar? Não por minha causa, mas por Wild Fire. Mas se fores má e o recusares, Wild Fire voltará para o deserto.
- Não! - exclamou Lucy.
- Acho que sim.
Lucy fez uma pausa. Como estava seca a sua língua! E a sua respiração pesada.
- Wild Fire deveria ter mais alguns dias de treino, depois um dia de descanso e depois as corridas - disse ela olhando Slone.
Um sorriso começava a suavizar-lhe as feições.
- Sim, Lucy - disse ele.
- E eu tenho de o montar?
- Claro que tens... se ele puder bater King.
Os olhos azuis de Lucy brilharam. Ela via a multidão - os curiosos e amigáveis índios, os vaqueiros, os cavalos, a cara de seu pai e, por fim, a corrida em si, uma
corrida como nunca tinha havido nenhuma, tão violenta, tão maravilhosa!
- Então, Lin - começou Lucy inspirando lentamente -, se eu aceitar Wild Fire tu guarda-lo... até... e se eu o aceitar, e te disser porquê, prometes-me dizer...
- Não tornes a pedir-me - interrompeu Slone. - Eu irei falar com Bosfil.
- Espera, prometes-me... não me dizer uma palavra... até depois
das corridas?
- Não te dizer nenhuma palavra. Acerca de quê? - perguntou ele.
- Acerca de... porque. Bem, eu aceito o teu cavalo.
- Sim - respondeu ele, suavemente.
Lucy sentou-se na sela e pegando no arreio, preparou-se para esporear Sarchedon.
- Lin, eu aceito o teu cavalo, Wild Fire, por que te amo. Sarchedon saltou em frente e Lucy não viu a cara de Slone nem ouviu
o que ele disse. Então, correu pela planície passando por Wild Fire, que resfolegava, sentindo o vento a bater-lhe na face. Não olhou para trás.

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CAPÍTULO XI

UM RIO INFERNAL


Durante o mês de Maio, Bostil pareceu completamente alheio às longas digressões de Lucy pela planície. Mas ele já as tinha notado antes de Holley e outros vaqueiros
se tivessem acercado com a informação.
- Deixem-na em paz - resmungou ele para os seus homens. - Ela sabe tomar conta de si mesma.
Quando estava sozinho Bostil matutava.
"Que será que a miúda anda a tramar? Alguma maldade, aposto." De qualquer maneira não lhe falou no assunto.
Por volta do fim do mês, quando Somers regressou da caça ao cavalo, Bostil pô-lo juntamente com Shugrue a trabalhar no conserto do barco. Bostil, ele mesmo, foi
lá, a pé - facto que poderia ter sido considerado anormal, se fosse notado.
- Ponham-lhe tábuas novas - foram as suas ordens para os homens. - E deitem alcatrão quente nas fendas. Quando o alcatrão secar, metam-no lá dentro, mas quando eu
lhes disser.
Todas as manhãs o jovem Creech remava até lá para ver se o barco estava pronto a fazer a travessia e trazer os cavalos de seu pai de volta. Na terceira manhã de
trabalho, Bostil encontrou Joel.
- Bostil, o meu velhote já nem dorme à espera de trazer os cavalos de volta - disse ele com franqueza. - A comida já quase que desapareceu.
- Não há problema, Joel - replicou Bostil. - Tu vês, o rio ainda não começou a crescer. Como estão os cavalos?
- Óptimos, senhor, óptimos! - exclamou o simplório do Joel. - Peg está a correr ainda mais velozmente que no ano passado, mas Blue Roan deixa-a a milhas. O pai vai
apostar tudo o que tem. O malhado não pode perder.
Bostil sentiu-se como um touro provocado por um cão. Blue Roan era um cavalo jovem, e todas as épocas crescia e ficava mais veloz. King já tinha alcançado o limite
de velocidade.
- Eu aconselhei o pai a trazer os cavalos a nado - declarou, deliberadamente, Joel.
- Ah, hum! Ah, sim? E porquê? - perguntou Bostil.
A simplicidade e a franqueza de Joel desapareceram e com elas a razão. Ficou esquisito. Os seus olhos despediam pequenos fachos de maldade. Gaguejou incoerentemente,
e recuou até ao penhasco, fazendo gestos violentos, e o seu gaguejar transformou-se em gritos, embora continuasse sem nexo. Entrou no barco e começou a remar rio
acima.
- Tem de certeza um parafuso a menos - observou Somers.

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Bostil não fez comentários. Afastou-se dos seus homens até à margem do rio, e encontrando assento numa pedra, começou a estudar a lenta e avermelhada corrente do
rio, pondo-se à escuta. Ouvia mil sons, mas nenhum era aquele que ele desejava ouvir.
Só faltavam alguns dias para as corridas. Piutes e navajos tinham acampado na planície, e de hora a hora chegavam mais. Construíam abrigos de cedros. Colunas de
fumo azul elevavam-se aqui e ali. Cavalos e póneis pastavam por toda a parte, e uma linha de índios estendia-se ao longo do percurso da corrida. A aldeia estava
cheia de vaqueiros, comerciantes de cavalos, caçadores e rancheiros. De momento, o trabalho no rancho estava praticamente parado, e mais dia menos dia todos os habitantes
da zona estariam no vale de Bostil.
Bostil caminhou até à vila, consciente de que a presença dos índios, vaqueiros, cavalos, a actividade, a cor, o movimento, a proximidade do dia da grande corrida
- estas coisas que nos anos anteriores lhe tinham provocado todo o deleite - de qualquer maneira tinham perdido o seu sabor. Ele estava diferente. Havia qualquer
coisa errada com ele. Finalmente a velha excitação de apostar e rir tomou conta dele e esqueceu tudo o resto.
O sítio de Brackton, como sempre, transformara-se no quartel-general de todos os visitantes. Macomber tinha acabado de entrar, cheio de entusiasmo e orgulho pelo
cavalo com que iria concorrer, e levava dinheiro para apostar.
Dois chefes navajos, a quem os brancos chamavam Old Horse e Silver, estavam ali pela primeira vez em muitos anos. Eles estavam prontos para apostar cavalo contra
cavalo. Cal Blinn e os seus vaqueiros do Durango haviam chegado, e como tal Colson, Sticks e Burthwait, velhos amigos e rivais "de Bostil.
Por momentos Brackton estava feliz. Houve muita bebida e algumas apostas. Só houve duas apostas contra King, e ambas feitas por índios. Macomber apostava o segundo
e o terceiro lugares para o seu cavalo na grande corrida. Nenhuma parelha de Bostil o tentou.
- Onde está Wetherby? - perguntou Bostil. - Ele ia trazer o seu cavalo.
- Wetherby chega amanhã - replicou Macomber. - Mas é melhor apostar dois para um.
- Olha lá, Bostil - disse o velho Cal Blinn -, espera até que eu veja King correr. Talvez te dê algum dinheiro.
- E quanto a mim, Bostil - disse Colson -, ainda não decidi com que cavalo correrei.
O esguio e cinzento Brackton inclinou-se sobre o seu registo, enquanto os vaqueiros e cavaleiros à sua volta se calaram para ouvir.
- Há o Sage King, de Bostil - respondeu Brackton -, Blue Roan e Peg. de Creech, Whitefoot, de Macomber, Rocks, de Holley, Hosshoes,

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de Blinn, Bay Charley, de Burthwait. E há os dois cavalos de Old Horse e Silver e por fim Wild Fire, de Lucy Bostil.
- Qual é o último? - perguntou Bostil.
- Wild Fire, de Lucy Bostil - repetiu Brackton.
- A rapariga inscreveu um cavalo?
- Sem dúvida que inscreveu. Veio cá hoje, muito eficiente, inscrever o seu nome e o do seu cavalo, aqui está, e pagou o dinheiro de entrada.
- Bem, que diabo! - exclamou Bostil. - Que cavalo é esse a quem ela chama Wild Fire?
- Isso é que ela não disse - replicou Brackton. - Holley e Van e mais alguns dos rapazes estavam cá. Troçaram um pouco. Haviam de ver o olhar que Lucy lhes mandou.
Mas pela primeira vez ela calou-se. Limitou-se a sair com um ar misterioso.
- Lucy arranjou algum pónei de algum índio, penso eu - retorquiu Bostil e começou a rir. - Então isso quer dizer que até agora estão dez cavalos inscritos.
- Certo. E deve haver mais algum, eu acho que a pista é suficientemente larga para doze.
- Bem. Brackton, vai haver um cavalo à frente e os outros atrás - respondeu Bostil secamente.
- Bostil. quase que me esquecia - continuou Brackton. - Cordts mandou dizer pelos piutes que chegaram hoje que viria de certeza.
A face de Bostil alterou-se subtilmente. A luz pareceu abandoná-lo. Não respondeu a Brackton e fingiu não ouvir o comentário que se levantou por todos os lados.
A opinião pública era contra a permissão que Bostil dera a Cordts para assistir às corridas com o seu bando de ladrões de cavalos.
- Quando vêm os cavalos de Creech? - perguntou Colson subitamente interessado.
- Bem. eu acho que em breve... - replicou Bostil, constrangido, afastando-se.
Ao chegar a casa. toda a excitação da hora passada tinha-o já abandonado e de novo uma sombra se apoderara da sua mente. Evitou a sua filha e tinha já esquecido
o facto de ela participar na corrida. Jantou sozinho e foi para o quarto onde se sentou no escuro a pensar. A pouco e pouco tudo ficou silencioso. Então levantou-se
num repelão. Tirou as botas e calçou um par de mocassins. Deslizou para fora da casa. mantendo-se na orla do caminho atravessou a planície até sair da aldeia, e
então meteu pelo trilho do rio. Com a segurança de um índio continuou a descer a ravina até ao rio.
O rio parecia exactamente o mesmo que durante o dia. Meteu-se através da escuridão da noite. Aí corria o rio que ele conhecia, ensombrado, misterioso, murmurante.
Bostil desceu até à orla da água e, sentando-se aí, escutou. A sua mente apenas sustentava uma ideia

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e trabalhava em torno dela. Apurou o ouvido com tanta concentração que por fim acabou por ouvir aquilo que desejava. Então pelas trevas retomou o caminho, e regressou
a casa como saíra, furtivamente como um índio.
Mas Bostil não descansou, nem dormiu.
Na manhã seguinte, cavalgou até ao rio. Somers e Shugrue tinham acabado o conserto do barco e estavam à espera. Outros homens estavam la. curiosos e atentos. Joel
Creech descalço, com olhos esgazeados e gestos esquisitos, passeava na areia.
O barco estava de pernas para o ar. Bostil examinou as tábuas novas e os remendos. Então endireitou-se.
- Virem-no - ordenou. - Metam-no na água. E deixem-no de molho por hoje.
Os homens pareciam contentes e aliviados. Joel Creech ouviu e aproximou-se de Bostil.
- Você... você vai buscar os cavalos do pai? - perguntou ele.
- Claro. Amanhã - replicou Bostil.
- Agora. Bostil. Peço desculpa pelo que disse - desabafou Joel.
- Cala-te. Vai dizer ao teu velhote.
Joel correu para o seu bote e. saltando lá para dentro, começou a remar vigorosamente. Bostil observava enquanto os homens viravam o barco, faziam-no deslizar pela
areia e atavam-no com segurança no molhe.
Nessa noite, quando tudo estava calmo na aldeia, Bostil emergiu de sua casa e no seu passo deslizante saiu até ao rio.
A distância parecia curta. O barco mantinha-se no molhe, com uma ponta no areal. Com gestos fortes e nervosos. Bostil desfez os nós das cordas. Então, envolveu-se
nas trevas daquela estranha e enorme ravina cavada em V no meio dos penhascos.
Entrou na água e sentando-se na pedra do costume, pôs-se à escuta. Apurou o ouvido, corrente acima, e em seguida corrente abaixo, repetidas vezes.
O rio parecia o mesmo. Corria suavemente e murmurava baixo. Dava pequenos gargarejos de ruídos musicais. Era um rio misterioso, contando a sua mentira com uma música
surda.
À medida que Bostil ouvia todos esses sons, o barulho da água foi-se transformando no que parecia um gemido, e esse gemido tinha um som tão baixo que só era perceptível
a um ouvido muito treinado.
E ao ouvi-lo Bostil estremeceu. Que queria ele fazer? Mil pensamentos ocorreram-lhe como resposta, mas nenhum era claro. Teve um arrepio. De súbito, sentiu frio
nos pés. Estavam ambos dentro da água. Tirou-se para fora e. inclinando-se, observou a linha escura da água. Subia cada vez mais. polegada a polegada, lentamente.
O rio estava a subir.
Bostil levantou-se.
- Meu Deus! Eu tinha razão ... ele está a subir! - exclamou roucamente.

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Encarou o rio com fascinação. Começou a passear na areia. Pensou nos belos cavalos de corrida do outro lado do rio.
- Não é demasiado tarde - murmurou. - Ainda posso levar o barco e voltar.
Ele sabia que no dia seguinte a corrente do Colorado iria encurralar os cavalos, prendendo-os numa ravina de argila, condenados a morrer à fome.
"Isso seria diabólico. Bostil, não podes fazer isso. Tu não és esse tipo de homem, Bostil a envenenar um poço de água onde os cavalos vão beber ou queimar a erva.
Que iria Lucy pensar de ti? Não, Bostil, tu deixaste-te levar pelo mal. Apressa-te e vai salvar aqueles cavalos."
Entrou no bote. Estava a flutuar e havia água entre ele e a margem. Bostil segurou os cabos. E enquanto o fazia, pensou em Creech e uma sombra apoderou-se dele.
Esqueceu-se dos cavalos de Creech. Não tinha o filho do seu inimigo armado uma emboscada? Não tinha estado a sua própria vida em jogo? Algo de terrível teria de
acontecer a Creech, algo que o esmagasse ou lhe desse coragem suficiente para avançar como um homem, com uma arma.
Começou a passear para a frente e para trás nas trevas. A todo o momento o rio ia mudando o seu som. Numa hora a corrente estaria aí. Então seria demasiado tarde.
De novo Bostil recordou os elegantes e velozes puros-sangues - Blue Roan. um cavalo selvagem que sempre desejara possuir, e Peg. uma égua sem igual na região.
Tornou-se implacável, duro, feroz e forte. Tinha-se encontrado. Puxou os cabos. As cordas tendo estado na água, estavam molhadas e corredias. Ele não conseguia atá-las.
Então cortou uma e depois a outra. O barco flutuava já fora do seu alcance. Instintivamente, Bostil tentou chegar-lhe para o puxar.
- Meu Deus, está a afastar-se - murmurou ele. - Que fui eu fazer? O rugido do rio crescia fatídico e incessante, com poucas pausas, e
estas eram marcadas por sons -estranhos como se ondas de água viessem rebentar à superfície. Vinte pés afastado o barco flutuava, virando um pouco como se estivesse
à deriva. Parecia relutante em partir. Estava seguro pela corrente da costa. Iradas e poderosas, as pequenas ondas fustigavam-no. Bostil observava-o com os olhos
dilatados. Aí estava a corrente, tinha sido aumentada e a água subia por toda a parte. Uma mão invisível, como a de um gigante, pareceu desencalhar o barco. A vaga
sombra passou pelo olhar de Bostil.
- Valha-me Deus. acabei de o fazer - disse com voz turva. E recuando, sentou-se. Ele sofria uma agonia física, como se um lobo o tivesse comido por dentro. - Para
o Inferno com os Creech e os seus cavalos, mas onde é que eu fui homem? -murmurou. E ali estava sentado com os braços à volta dos joelhos, inerte física e psicologicamente.
A água que subia quebrou o feitiço e trouxe-o de volta a si mesmo. O rio já não rastejava. Crescia. E também o seu barulho aumentava.

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Bostil apressou-se, através do banco, até ao caminho de rocha antes que ficasse cortado e os últimos passos deu-os com a água cobrindo-lhe os joelhos.
- Aqui não deixarei nenhuma pista - murmurou.
E ali no fim da pista de pedra parou para ver e escutar. O velho e memorável som chegou aos seus ouvidos. A enchente estava a chegar. Durante vinte e três anos ouvira
o prirneiro som da enchente do Colorado. Mas nunca assim, pois misturado com este som ele ouvia a força e a paixão do seu sangue, e tornara-se uma parte humana desse
rio sem remorsos.
Uma brisa fustigou a face de Bostil. Ouvia-se um tremendo trovão como se as colossais paredes estivessem a cair em avalanche. Bostil sabia que a crosta da enchente
depressa chegaria a ele. Todo o seu corpo ficou gelado, e começou a trepar com os pés ligeiros.
As sombras da ravina iluminaram-se. A espuma selvagem do rio, como uma cortina, movia-se em baixo, espalhando-se em turbilhão. Bostil correu para escapar à grande
onda que surgiu no anfiteatro, cada vez mais acima do trilho de pedra. Quando olhou para baixo, pareceu-lhe ver o Inferno. A lúgubre profundeza, marcada por brilhos
débeis e por formas pretas e sinistras agitando-se por detrás. Olhou tudo isto com olhar fixo até que de novo a percepção do seu ouvido e um horrível troar o trouxe
à realidade. Era apenas a enchente do Colorado.


CAPÍTULO XII

A CORRIDA


Bostil dormiu naquela noite, mas o seu sono era agitado, e um estranho e lamentoso ruído parecia assombrá-lo, como o vento quente a soprar no deserto escuro. Foi
acordado por uma voz na janela.
- Bostil! Bostil! - Era a voz de Holley.
Bostil saiu da cama. Apenas tirara as botas para se deitar.
- Bem. Hawk, que é isso de acordar um homem a esta hora? - grunhiu Bostil.
A cara de Holley aparecia por cima do tosco beiral.
- Não é assim tão cedo - disse. - Ouça, chefe.
Bostil parou de calçar a bota. Olhou para o seu homem enquanto escutava. O ar quieto lá fora parecia estar cheio de um som surdo, como um trovão à distância. Bostil
tentou parecer surpreendido.
- Inferno. É o Colorado. Está a encher.
- Deve ser mesmo um inferno... para Creech - Holley. - Patrão por que não mandou buscar os cavalos?

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A face de Bostil escureceu.
- Holley, tu estás sem dúvida ansioso pelo Creech. És amigo dele?
- Não. Não sou amigo dele - respondeu Holley. - E você sabe disso. Mas preocupo-me com os cavalos dele como com quaisquer outros.
- Hum. E qual é o teu problema?
- Nada, excepto que você podia tê-los mandado buscar antes que a corrente subisse. É tudo.
O velho comerciante de cavalos e o seu braço-direito olharam-se em silêncio. Eles compreendiam-se um ao outro. Então, Bostil recomeçou a calçar as botas molhadas
e Holley desapareceu.
Bostil abriu a porta e saiu cá fora. A parte leste do deserto estava vermelha ao brilho do sol. Na manhã fresca e encantadora, com a noite que passara, Bostil não
sofreu nenhum sentimento de remorso ou arrependimento. Foi tomar o pequeno-almoço.
Encontrou Lucy na cozinha, e pelo sorriso que ela lhe dirigiu pôde ver que ela o continuava a ver com os mesmos olhos.
Ela estava radiante. Os seus olhos azuis cintilavam. Parecia excitada. Tinha estado a contar algo a sua tia, pois esta estava ao mesmo tempo chocada e deliciada.
- Vim interromper alguma confidência, de certeza - disse Bostil bem-humorado.
- Sem dúvida que veio - replicou Lucy com um sorriso brilhante.
- Jane, o que anda a miúda a tramar? - perguntou Bostil, virando-se para a sua irmã.
- Só o bom Deus o sabe - replicou a tia Jane.
- Miúda? Veja lá, pai, eu já fiz dezoito anos, sou crescida. E posso fazer o que quiser, ir onde me apetecer, e qualquer outra coisa, bem, pai, até poderia casar.
- Ah, ah - riu Bostil. - Jane ouve esta rapariga.
- Eu ouço-a, Bostil - disse a tia Jane.
- Bem, Lucy, só quero ver tu arranjares uma doença amorosa por algum vaqueiro, quando eu me sinto tão bem - disse Bostil.
Lucy abanou a sua cabeça dourada, mas não respondeu.
- Jane. que é que lhe deu?-perguntou Bostil, apelando para a sua irmã.
- Bostil, ela está a brincar, com certeza - declarou a tia Jane. - Vem tomar o pequeno-almoço.
Bostil sentou-se à mesa, contente por poder ser amável com as suas mulheres.
- Lucy, amanhã vai ser o maior dia do rancho de Bostil - disse ele.
- Claro que vai, pai. O dia mais surpreendente que o rancho alguma vez teve - replicou Lucy.
- Quem é que vai ter surpresas?
- Toda a gente.
- Brackton disse-me que inscreveste um cavalo.

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- É uma corrida livre, não é?
- Livre como o deserto, Lucy - replicou ele. - Que cavalo é esse, Wild Fire, com que tu vais correr?
- Isso querias tu saber - brincou Lucy.
- Se é tão bom como o seu nome, pode ser que chegues ao fim. Mas, querida Lucy, vamos agora ser sensatos... não vais levar nenhum cavalo ranhoso para esta grande
corrida?
- Pai, eu vou montar um "cavalo".
- Bem. o teu montar um cavalo não me assusta - disse ele soberbamente. - E enquanto o mereceres eu não to vou proibir. Mas, Lucy, nada de apostas. Não vou permitir
que tu jogues.
- Nem mesmo consigo? - disse ela.
Bostil encarou a rapariga. Que é que lhe tinha dado?
- Que queres apostar? - perguntou com curiosidade.
- Pai, eu aposto cem dólares em ouro em como ganho o primeiro, o segundo ou o terceiro lugar.
Bostil inclinou a cabeça e riu às gargalhadas. Que ingénua ela era.
- Criança, há vários cavalos velozes que ficarão atrás de King. Estás a deitar dinheiro fora.
Um brilho azul faiscou nos olhos de sua filha. Ela estava uma mulher de negócios, e Bostil sentiu-se orgulhoso.
- Pai. eu aposto duzentos em como baterei King - disse num jacto.
- Com mil diabos! - gritou Bostil. - Não aceito. Acho que nunca antes recusei uma aposta. Vê se percebes, Lucy, que participares na corrida é já suficiente.
- Está bem, pai - respondeu.
Nesse momento Bostil desviou o seu prato e virou-se para a porta.
- Não é um cavalo a correr que eu estou a ouvir?
A tia Jane parou de fazer barulho, e Lucy correu para a porta.
- É Van no King - disse Lucy da porta. - Pai, Van saltou, vem aí... vem a correr. Aconteceu qualquer coisa... vêm aí outros cavalos... vaqueiros... índios.
Bostil preparou-se.
- Olá, Miss Lucy. Onde está Bostil?
- Entra rapaz - disse Bostil. - Por que estás tão agitado? Van entrou, com as esporas a tinir e o boné na mão.
- Patrão, o rio... subiu sessenta metros - explicou Van.
- Oh! - gritou Lucy correndo ao encontro de seu pai.
- Bem, Van. Eu já sabia - replicou Bostil. - Talvez já esteja velho, mas ainda sei ouvir, escuta.
Lucy saltitou até à porta e virou a cabeça na direcção do rio, inclinando-a até ouvir.
- A enchente mais alta que já vi - disse Van.
- Têm estado lá em baixo? - perguntou Bostil.

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- Não no rio - replicou Van. - Eu fui até onde se abre o precipício. Havia uma série de navajos a descerem. E alguns a subirem.! Fiquei ali a olhar para a corrente
e depressa Somers chegou ao trilho com Blakesley e Brack e alguns vaqueiros. E Somers gritava: "O barco desapareceu."
- Desapareceu! - exclamou Bostil.
- Oh, pai. Oh, Van - gritou Lucy, com os olhos abertos e os lábios apertados.
- Claro que desapareceu. E todo aquele sítio... onde estavam os salgueiros e o banco de areia... estão debaixo de água.
- Que vai acontecer aos cavalos de Creech? - perguntou Lucy sem fôlego.
- Meu Deus! Não é uma pena? -- continuou Bostil. Sentiu os olhos de Lucy a cravarem-se-lhe no rosto.
- Era o que todos estávamos a dizer - continuou Van. - Enquanto olhávamos a terrível corrente e ouvíamos o barulho das pedras a rolar, alguém viu Creech e dois piutes
a levarem os cavalos até àquele trilho onde começa a descida. Contámos os cavalos... nove. E vimos o malhado a brilhar azul à luz do Sol.
- Piutes com Creech! - exclamou Bostil, com uma profunda sombra escura a turvar-lhe os olhos. - Bem, isso é uma sorte. Talvez os índios consigam trazer os cavalos
para fora daquele buraco e encontrar água e erva suficientes.
- Talvez - replicou Van duvidoso.
- Com os índios, Creech tem uma chance de tirar os seus cavalos
- declarou Bostil. Ele estava seguro da sua sinceridade, mas não tinha a certeza se essa sinceridade se tornaria no nascer de uma nova esperança.] E então estava
pronto a enfrentar o olhar de sua filha.
- Oh, pai, por que não se apressou a passar os cavalos de Creech?!
- perguntou Lucy. Algo que apertava o peito de Bostil, pareceu afrouxar.
- Por que não o fiz? Bem, Lucy, não pensei que houvesse pressa em fazer esse favor a Creech. Agora lamento-o.
- Não será tão horrível se conseguir salvar os seus cavalos - murmurou Lucy.
- Onde está o jovem Joel Creech? - perguntou Bostil.
- Ele estava nesta margem à noite - explicou Van. - De facto, Joel foi o primeiro a saber que o rio tinha subido. Alguém disse que ele dormiu na ravina ontem à noite.
De qualquer maneira, ele agora estáj maluco. E aposto que vai magoar alguém.
- Hum - resmungou Bostil. - Tens razão.
- Pai, não há nada que se possa fazer para ajudar Creech? - apelou Lucy, aproximando-se do pai.
Bostil rodeou-a com o braço e sentiu-se imensamente aliviado ao sentir a pressão da sua cabeça dourada contra o ombro.
- Pequena, não podemos voar através do rio. Agora não chores os cavalos de Creech. Eles ainda não morreram. É pouca sorte. Mas talvez Creech acabe só por perder
a corrida. E, Lucy, é mais que certo que já perdeu.
Bostil acariciou a rapariga pela primeira vez em muitos dias, e então voltou-se para os vaqueiros que estavam à porta.
- Van, como está King?
- Selvagem na corrida, Bostil, cada vez mais selvagem. Não haverá nenhum cavalo que amanhã lhe faça sombra.
Lucy levantou a cabeça.
- Achas isso, Van Slick? Se tu e King não correrem mais do que o que costumam, eu nunca mais montaria. - E com esta frase, Lucy saiu do quarto.
Van ficou a olhar para a porta e depois para Bostil.
- Que é que eu disse, Bostil? - perguntou abismado. - Estou sempre a arreliá-la.
- Anima-te, Van. Não disseste nada. Lucy tem andado agressiva. Vá lá. Quero ver o King.

O percurso da corrida ficava no sopé da encosta, e agora a planície cinzenta e púrpura estava tão repleta de cavalos e índios, de coisas coloridas e movimentadas,
como Bostil nunca tinha visto. Foi um espectáculo que o excitou. De muitas fogueiras emanavam colunas de fumo azul, à frente das toscas cabanas construídas à pressa,
onde os índios cozinhavam e comiam. Os cobertores brilhavam ao sol, burros pastavam e zurravam; os cavalos relinchavam agudamente através da planície; os índios
descansavam indolentes em frente das cabanas ou conversavam em grupos, sentados ou passeando nos seus cavalos; lá em baixo no vale, aqui e ali, alguns índios corriam
e outros perseguiam os cavalos nervosos. Para além deste alegre e colorido panorama findava-se o vale, transformando-se em deserto maravilhosa e poderosamente marcado
pelas montanhas.
Ao desmontar, Bostil atirou o arreio a um vaqueiro, e viu um rosto que de súbito lhe gelou a excitação do momento. Um homem alto e magro, com olhos pretos cavernosos
e um enorme e descaído bigode escuro, estava na sua frente e parecia esperar. Era Cordts.
- Bostil. como estás? - disse Cordts. Da sua mão esquerda pendia um cinto que continha duas pesadas armas.
- Olá, Cordts - replicou Bostil, desmontando lentamente. Então apertou a mão do outro.
- Apostei forte no King - disse Cordts.
- Bem. eu estava à espera que apostasses noutro cavalo, para eu poder ficar com o teu dinheiro - replicou Bostil.
Cordts ergueu o cinto e as armas a Bostil.

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- Espero apreciar esta corrida - disse ele.
- Cordts, eu não quero ficar com as tuas armas - replicou Bostil determinado. - Deste-me a tua palavra e é o suficiente.
- Obrigado, Bostil. De qualquer maneira, como sou teu convidado não as usarei - retorquiu Cordts e pendurou-as na sela de Bostil. - Alguns dos meus homens estão
comigo. Estavam bem, até se meterem no uísque de Brackton. Mas agora não respondo por eles.
- Bem. não devias dizer-me isso - replicou Bostil. - Eu dirigirei esta corrida e tu respondes por toda a gente.
Bostil reconheceu Hutchinson e Dick Sears, mas os outros do bando de Cordts ele não conhecia. Era um grupo mal-encarado. Hutchinson tinha os ombros vergados, a cara
vermelha, olhos estrábicos inundados de maldade. E Dick Sears dava nas vistas. Era um pequeno pedaço de músculo, baixo e de pernas arqueadas, de aparência agreste
como um cacto.
Bostil virou-se para o grupo dos seus vaqueiros e amigos e perguntou por sua filha.
- Lucy está ali - disse Farlane, apontando uma alegre multidão. Bostil acenou-lhe, e Lucy, interpretando-o mal, aproximou-se com
um dos seus póneis. Ela vestia uma blusa cinzenta com um lenço vermelho, saia e botas. O cabelo penteado em trança, e uma fita vermelha na cabeça. Bostil abarcou-a
com o olhar. Ela estava eficiente e parecia perigosa.
- Lucy, onde está o teu cavalo? - perguntou curioso.
- Não se preocupe, pai. Ele estará cá no início - replicou.
- Então hoje o vermelho é a tua cor? - perguntou ele, enquanto assentava a mão na brilhante fita vermelha.
Ela acenou maliciosamente.
- Pequena, estás mesmo decidida a correr nesta prova, na grande corrida?
- Completamente decidida.
- Bem, a única coisa desagradável para mim hoje, vai ser ver-te vencida. Mas se conseguires ficar em segundo lugar dou-te um presente de fazer inveja.
Até os chefes índios sorriram. Old Horse, o Navajo, inclinava-se favoravelmente perante esta filha do amigo dos índios. Silver, o seu irmão, acenava como se compreendesse
o orgulho e o desgosto de Bostil.
- Miss Lucy, eu vou detestar correr um cavalo contra o seu - disse o velho Cal Blinn. Então Colson, Sticks, Burthwait e outros participantes dirigiram cumprimentos
risonhos à loura rapariga.
Bostil estava a gozar com tudo isto, até que apanhou o estranho e intenso olhar nos cavernosos olhos de Cordts. Isso chocou-o. Bostil lamentou ter permitido a presença
do ladrão de cavalos nas corridas.
- Lucy, volta para o pé das mulheres até estares pronta para sair no teu cavalo - disse ele. - E tem cuidado hoje.
Lançou-lhe um olhar significativo, que ela compreendeu perfeitamente, e então voltou-se para começar o desporto do dia.
As corridas dos índios decorriam aos dois e três de cada vez, até que aumentaram para um número que enchia o percurso da corrida; as apostas, os berros, as corridas;
os selvagens e saltitantes cavalos, o calor, o pó e o bater dos cascos; as excitações das apostas; as surpresas, as derrotas, as vitórias, os chefes mantendo-se
ciumentos na planície; o movimento sem fim, o colorido da grande festa, a velocidade e a emoção - tudo isto Bostil amava tremendamente.
Mas isto não era nada em comparação com o clima que se ia aproximando, o da grande corrida.
Era já de tarde quando tudo ficou pronto para esta corrida, e a planície brilhava cinzenta ao sol do oeste. Toda a gente esperava, descansava. A tensão dos cavaleiros
parecia alastrar-se a toda a assistência. Só os puros-sangues estavam inquietos. Agitavam-se, batendo com as patas no chão e abanavam as cabeças. Sabiam o que estava
para acontecer. Eles queriam correr.
Bostil, ele mesmo, aparelhou o seu favorito, Sage King, que estava à cabeça. Ele brilhava, contrastando com os outros cavalos. O seu corpo cinzento estava macio
e brilhante como cetim.
Sage King era o favorito das apostas; os índios, grandes jogadores, apostavam nele em força.
Bostil demorou a selá-lo. Van observava. Estava pálido e nervoso. Bostil apercebeu-se disso.
- Van - disse ele. - A corrida é tua.
O cavaleiro pegou no arreio com mão ágil e, quando o seu pé tocou no estribo, Sage King elevou-se. Desceu, rápido, ágil, gracioso e então alinhou com os outros cavalos.
Bostil acenou com a mão. Então, o grupo de cavaleiros e cavalos dirigiram-se para a linha de partida, duas milhas acima do vale. Macomber e Blinn, com um vaqueiro
e um navajo, estavam lá como juízes oficiais da prova.
Os olhos de Bostil reluziam. Pousou uma mão amigável no ombro do Cordts, uma acção que bem demonstrava a tensão do momento.
De súbito, Holley, tocando em Bostil, apontou para a encosta.
- Aí está Lucy - disse ele. - Ela vai juntar-se ao grupo.
- Lucy? Onde? Tinha-me esquecido da minha rapariga. Onde?
- Ali - repetiu Holley apontando. Outros do grupo, tendo visto Lucy a aproximar-se, falaram.
- Vem num cavalo vermelho - disse um.
- Parece de fogo e é grande - disse outro. - Quem tem um óculo? Bostil possuía o único e estava a usá-lo. Através do magnífico campo
visual movia-se um cavalo vermelho, enorme, com a crina esvoaçando como uma chama. Lucy montava-o. Bostil estremeceu e o seu pulso bateu.

82 - 83

Mas a distância era enorme, o óculo imperfeito, não podia confiar no que via.
- Holley. não consigo ver nada - queixou-se. - Toma o óculo. Diz-me como é o cavalo de Lucy.
- Patrão, não preciso de óculo para ver que ela vem num "cavalo - replicou Holley, enquanto pegava na lente. Elevou-a, ajustando-a ao olho. demoradamente.
- Bem, consegues ver melhor que eu? - perguntou Bostil, ansioso. Por fim, Holley falou:
- Ela traz um garanhão selvagem. É vermelho como o fogo. E muito grande, forte. Parece que não quer aproximar-se do grupo. Céus! Que genica! Bostil. eu diria que
é um grande cavalo.
Houve um momento de intenso silêncio no grupo de Bostil. Holley nunca se enganara acerca de um cavalo e nunca era exagerado nas suas palavras.
- Um garanhão selvagem - ecoou Bostil. - Ah, e chama-se WildFire. Então, toda a gente olhou para a escura massa de cavalos e cavaleiros
no vale. E todos esperaram que Holley se pronunciasse.
- Estão a alinhar - começou o cavaleiro. - Parece que está a haver confusão. Bostil, aquele cavalo vermelho é o diabo. Ele quer luta. Aí. Ele ergue-se no ar. Rapazes,
ele é um demónio, um assassino como todos os garanhões selvagens. Ele está a bater no King... a espernear. Lucy puxou-o para baixo. Ela está a segurá-lo. Puseram
King do outro lado. Assim está melhor. Mas o cavalo de Lucy não aguenta. De qualquer maneira é a partida. Van tem a melhor posição. Aquela raposa. Ele está na frente
antes que os outros saibam que a corrida já começou. Van, aqueles cavalos estão a portar-se escandalosamente. Acho que o garanhão vermelho os assustou. Agora estão
todos alinhados. Ah, fumo de pistola! Estão a mexer-se, parece a partida.
Então. Holley ficou silencioso, concentrado no que via. Assim como todos os outros assistentes se calaram. Bostil viu lá em baixo no vale a linha escura dos cavalos.
- Partiram! Partiram! - disse Holley, emocionado.
Bostil lançou um grito rouco e profundo, que se elevou acima dos berros dos homens que o rodeavam e foi ouvido mesmo acima dos gritos dos índios. Então, assim como
se ergueram os berros, tão logo desapareceram.
Holley subiu a uma pedra com o óculo ajustado.
- Mac baixou a bandeira. É mesmo a partida. Agora. Van está na frente. King vai a galope. Patrão. King está a correr. Vejam. Vejam. Vejam aquele cavalo vermelho
a saltar. Bostil. ele vai atrás do King, eu sabia. É como a luz. Ele está a empurrar King para fora do caminho. Vejam-no mergulhar. Céus! Lucy não consegue segurá-lo.
Ela vai acima, abaixo, é atirada, mas agarra-se como uma rocha. Grande Lucy, aguenta-te. Meu Deus, Bostil, King foi derrubado. Está caído. Vem
acima, fora do caminho. Os outros já passaram... Van está fora da corrida. E Bostil... e senhores, já só há uma coisa nesta corrida, um enorme cavalo vermelho.
O coração de Bostil deu um grande salto e depois pareceu imobilizar-se. Que horrível e doentio desapontamento. Cólera, uma cólera impotente apoderou-se dele. Amaldiçoou
Van e jurou matar o vermelho garanhão.
Alguém o abanou com força. As palavras iniciais de alguém a entrarem-lhe nos ouvidos palpitantes:
- Sorte do jogo. King não foi batido. Foi posto fora.
Então, os hábitos de vaqueiro acordaram e Bostil começou a recuperar. Mesmo com King fora seria um Bostil a vencer a corrida.
A sua fraca vista tornou-se mais clara e aguda. E com um sobressalto ele viu a linha que se movia, tomar a forma de cavalos.
Um cavalo brilhante estava no comando. Crescia cada vez mais brilhante e maior. Avançava cada vez mais velozmente. Bostil ouviu Holley e Cordts berrarem - e outras
vozes, mas não distinguiu o que diziam. A linha de cavalos começou a juntar-se. A corrida parecia apertada apesar do que Holley dizia. Os índios começavam a saltar
em frente, gritando. Bostil esqueceu King.
Então Holley soprou-lhe aos ouvidos:
- Estão a meio do caminho.
A corrida era maravilhosa. Bostil apurou a vista. Regozijou-se com o que viu, Lucy deitada sobre o pescoço do garanhão. Agora conseguia ver melhor. Estavam a aproximar-se.
Com que velocidade. As mil emoções que Bostil experimentou juntaram-se num arrepio. Ele estava encharcado em suor. A sua voz estrondosa ergueu-se, incitando Lucy
a ganhar.
- Três quartos - berrou Holley aos ouvidos de Bostil. - E Lucy está a dar rédea solta ao cavalo. Veja, Bostil. Nunca na vida viu um cavalo correr desta maneira.
Bostil nunca vira. Aquela labareda estava a afastar-se dos outros. E agora estavam perto, a chegar à meta. Um definido ruído, feito pelos espectadores, abafou todos
os outros. Uma agitada e movimentada tribo rodeou Bostil.
Bostil viu o cabelo dourado de Lucy afastar-se da crina chamejante. E então só pode ver o enorme e vermelho cavalo Wild Fire mais veloz que o vento. Bostil pensou
numa tempestade de fogo abrasando a planície.
Aí vinha o vermelho garanhão. Que tremenda cavalgada! Que maravilhosa recuperação! Que facilidade! Que porte selvagem!
Passou como um raio, baixo, afilado, comprido, cada vez mais veloz - vencedor por uma dúzia de passos.

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CAPÍTULO XIII

UMA NUVEM DE PÓ


Wild Fire continuou a correr vale abaixo, longe dos gritos da multidão alinhada na encosta. Bostil estava surdo: observava o garanhão até que finalmente Lucy o forçou
a parar e a voltar.
Então, Bostil voltou-se para ver onde Van e King estavam. O Whitefoot, de Holley, ficara em segundo lugar e um cavalo navajo em terceiro.
- Chefe, ele ficou em segundo - não deixava de repetir Holley. Bostil teve calma suficiente para apertar a mão a Holley e dizer-lhe
que se sentia feliz, quando a sua vontade era explodir e dizer que não tinha havido corrida. Então os nervos de Bostil agitaram-se ao ver Van com King a trote a
atravessar a encosta.
Van subiu a encosta e desmontou. Estava pálido e trémulo.
A pele acetinada de King estava suja, com pó e pedaços de cactos. Nem sequer estava quente. Não parecia estar ferido ou marcado.
- Bem, Van, tens de sair dessa maneira - disse Bostil.
- Esse cavalo vermelho assustou toda a corrida e King antes do início - disse Van, rapidamente. - Lucy afastou-o de King por duas vezes, ele queria matar King. Sage
King também queria lutar. Eu não conseguia mantê- lo. Wild Fire aproximou-se e queria morder o pescoço de King. Lucy puxou-o até que gritei que ela atirava o cavalo
e nos matava a ambos. Então Wild Fire saltou e acertou-nos e nós caímos. Eu passei um mau bocado, mas King não está ferido. Chefe, aquele cavalo é um demónio.
- Foi pouca sorte, Van - disse Bostil. - Não houve corrida. Leva-o para casa.
- Acho que vem aí o homem que ganhou o dinheiro do prémio -: realçou Holley, apontando um homem que montava um enorme e peludo cavalo preto e trazia o pónei de Lucy.
- E aí vem Lucy trazendo de volta o garanhão - ajuntou Shugrue. Lucy acenou com a mão. e o estranho vaqueiro, para quem Holley tinha
chamado à atenção, afastou-se da multidão aproximando-se de Wild Fire.
O olhar de Bostil dirigiu-se para a esplêndida constituição do vaqueiro, para os seus olhos negros e cara bem traçada. Trazia um laço enrolado na mão. Avançou na
direcção de Wild Fire. O garanhão relinchou e ergueu-se
O vaqueiro dirigiu-se, determinado, até ao trémulo Wild Fire. Enquanto Wild Fire se erguia cada vez mais, o vaqueiro agarrando o arreio, puxou-o para baixo com braço
de ferro.
- Pai - disse Lucy, com uma voz fraca.

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Bostil aproximou-se, enquanto o vaqueiro segurava Wild Fire. Lucy era agora apenas uma garota, e fraquejava. O seu receio, o seu pequeno sorriso era como se não
se atrevesse a esperar a aprovação do seu pai, no entanto não pôde evitar, tocou em Bostil, e ele abriu os braços. Lucy deslizou para dentro deles.
- Lucy. minha filha, ganhaste a corrida do King e traíste o teu pobre e velho pai.
- Oh, pai. Eu não sabia, eu nunca sonhei que Wild Fire saltaria para o King. - Lucy gaguejava. - Eu não conseguia segurá-lo. Ele foi terrível, pôs-me doente. Pai,
diz-me que o Van não está ferido, nem King.
- O cavalo está bem e Van também - replicou Bostil. - Não chores, Lucy. Foi uma tola partida que fizeste, mas fizeste-a bem. Meu Deus, sem dúvida que montaste aquele
demónio! E comigo está tudo bem.
Bostil soltou-a e guiou-a através de índios admiradores e dos vaqueiros que aplaudiam, e deixou-a com as mulheres.
Quando regressou, chegou a tempo de ver o vaqueiro estranho montar Wild Fire. Montou veloz e habilmente com o garanhão no ar. Quando desceu, pateou a erva e fê-lo
voar, e quando de novo o imobilizou, ele transformou-se num vulto vermelho, com o pêlo eriçado, uma besta selvagem, furiosa, doido por derrubar o cavaleiro. O vaqueiro
cravara-lhe as esporas e parecia agora fazer parte do cavalo.
Todos os vaqueiros apostavam que o cavalo derrubaria o cavaleiro. E, Bostil, vendo as possibilidades de Wild Fire em o fazer, concordou com eles. Nenhum homem se
aguentaria naquele cavalo. De súbito, Wild Fire meteu-se pela planície, estatelando-se na poeira, atirando o cavaleiro para a frente. Homem e cavalo ambos foram
rápidos e levantaram-se, mas já o cavaleiro tinha o pé no estribo, antes de Wild Fire se ter recomposto.
Então o cavalo relinchou, correu, voltou em círculos e lentamente cedeu ao controlo do cavaleiro. Estes momentos de movimento e actividade tinham-no posto a suar
e a espumar - Wild Fire estava encharcado. O vaqueiro conduziu-o até Bostil e desmontou.
- Algumas vezes consigo montá-lo, outras não - disse com um sorriso,
- Bem, aguentou-se mais tempo do que qualquer um de nós pensou
- disse Bostil apertando-lhe efusivamente a mão. - Eu sou Bostil. Prazer em conhecê-lo.
- O meu nome é Slone. Lin Slone - replicou o vaqueiro abertamente.
- Sou caçador de cavalos e venho de Utá.
- Utá? Como chegou até aqui? Bem. você tem um grande cavalo... e arranjou-lhe um grande cavaleiro para a corrida, a minha Lucy. - Olhou firmemente a face de Slone.
- Bostil. eu persegui este cavalo durante dias. semanas, meses, por milhares de quilómetros através de ravinas e rios.
- Não - interrompeu Bostil inexpressivamente.
- Sim. Mais tarde dir-lhe-ei como. Aqui apanhei-o, domei-o como nunca foi domado.

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Derrubou-me e fugiu. A sua rapariga apareceu, salvou o meu cavalo, e salvou-me a mim, também. Eu estive mal durante dias. Mas fiquei bem... e... e então ela pediu-me
para a deixar correr com Wild Fire na grande corrida. Não podia recusar. E teria sido uma grande corrida se não fosse a pouca sorte de King ter tido um acidente.
Lamento muito.
- Slone, magoou-me um pouco a desilusão. Mas já passou - replicou Bostil. - E foi assim que Lucy encontrou o seu cavalo. Ela andava sem dúvida misteriosa. Bem, bem.
Bostil apercebeu-se da presença dos outros por trás.
- Holley, aperta a mão a Slone, caçador de cavalos de Utá. Tu também. Cal Blinn... E Macomber, e Wetherby apresento-te este meu amigo, o jovem Slone. E Cordts, aperta
a mão do homem que é dono de um grande cavalo.
Bostil riu-se ao apresentar o ladrão de cavalos a Slone. Todos os outros o acompanharam, até Cordts se lhes juntou.
- Como vai, Slone? - disse Cordts com a mão esticada. - Tenho muito prazer em conhecê-lo. Gostava de trocar Sage King por este garanhão.
Este dito foi recebido com uma gargalhada, excepto por Bostil e por Slone. A piada era para Bostil e ele mostrou-o. Slone nem sequer sorriu.
- Como está, Cordts? - replicou. - Prazer em conhecê-lo, assim reconhecê-lo-ei quando o vir.
- Bem, hoje somos todos boa gente - interpôs Bostil. - Agora, regressemos a casa para comer. Slone, vem comigo.
O Sol punha-se a oeste; sombras purpúreas enevoavam as luzes douradas do vale; o dia da corrida estava praticamente terminado. índios conversavam ainda aqui e ali
em grupos, outros recolhiam os cavalos; e a maioria cavalgava e dirigia-se com a multidão para a vila.
Bostil observou que Cordts se adiantara ao grupo e parecia agora dizer algo enfaticamente a Dick Sears e a Hutchinson. Bostil ouviu Cordts praguejar. Provavelmente
censurava Sears. Cordts tinha agido irrepreensivelmente - tinha cumprido a sua palavra, como Bostil acreditara que o fizesse. Cordts e Hutchinson montaram os seus
cavalos e seguiram para a esquerda da multidão que se afastava. Mas Sears tinha ficado para trás.
Todos os cavalos, excepto Wild Fire, estavam em manada, atrás do banco. Sears parecia agitar-se com as correias da sua sela.
De súbito, houve uma paragem na conversa dos homens, uma praga na voz profunda de Holley, um violento sobressalto no grupo. Bostil virou-se e viu Sears numa posição
ameaçadora com duas pistolas apontadas.
- Nem um pio - gritou. - E não se mexam.
- Que diabo é que tu queres? - perguntou Bostil.
- Eu trato de ti se te mexes, é o que é - replicou Sears, e ordenou a Holley que se aproximasse.
O velho vaqueiro, que era o primeiro do grupo, obedeceu instantaneamente com as mãos erguidas. Não tinha nenhuma chance,

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pois só ele trazia arma. Com passos rápidos, Sears avançou, tirou a arma de Holley e atirou-a para a planície.
A face de Bostil tornou-se escarlate e o seu pescoço estremeceu.
- Meu Deus, Sears, tu não vais roubar o cavalo deste rapaz.
- Cala-te - ordenou-lhe o ladrão de cavalos. Puxou a arma para perto de Bostil. - Eu sempre te quis apanhar. E era capaz de tratar de ti. Se não fosse o cavalo assustar-se...
Se tornas a piar eu mato-te, e corro o risco.
- Sears, se é o meu cavalo que tu queres não precisas de matar Bostil - disse Slone.
- Deixa-o aqui - ordenou Sears.
Wild Fire parecia recear mais os cavalos atrás de si que os homens. Slone pôde conduzi-lo até a alguns passos de Sears. Então deixou cair os arreios. Wild Fire relinchou,
parecia querer saltar. Mas Sears apanhou os arreios. Slone ainda segurava o laço enrolado, e a corda caiu na sua frente enquanto recuava.
Sears embainhou a arma da mão esquerda. Mantendo o grupo coberto com a outra, recuou à procura do arreio pendente. Wild Fire relinchou, parecia querer saltar. Mas
Sears tinha apanhado os arreios.
Então, ágil como um gato, Sears saltou para a sela. Wild Fire relinchou e levantou as patas dianteiras a uma altura que parecia que ia desequilibrar-se.
Sears, com o salto, ficara com a arma virada para cima. Baixou-a mas sem resultado, pois Wild Fire começara a pular.
Algo assobiou. Bostil viu o laço de Slone voltear, ondulado e vacilante. O laço corredio voou vigoroso até rodear Sears. A corda ficou tesa. Sears foi derrubado
da sela, de encontro ao chão, com grande impacto.
Quase tão ligeira como a vista de Bostil, foi a acção de Slone, voando pelo ar, pulando para o cavalo. Sears atirou, uma, duas vezes. Então Wild Fire correu, enquanto
o seu cavaleiro atava o laço à sela. Sears, meio levantado, foi arrastado dez metros. Um guincho horrível ecoou.
Uma nuvem de pó na planície - uma linha que se arrastava pelo vale.
Bostil estava espantado. O garanhão vermelho dava pulos curtos. Slone abaixou-se para apanhar as rédeas soltas. Quando se endireitou na sela, Wild Fire partiu num
galope desenfreado.
- Dick Sears está acabado. Laçado por um jovem vaqueiro-exclamou Cal Blinn com fervor.
- Isto foi o truque mais rápido que eu vi em toda a minha vida- declarou Macomber.
Observaram Wild Fire que corria na planície em direcção ao vale, levantando uma nuvem de pó. Toda a gente deu conta quando aquela nuvem peculiar findou. Wild Fire
parecia querer avançar com mais velocidade. Então, abrandou. O cavaleiro virou-o e regressou para junto do grupo a galope ligeiro. Depressa Wild Fire transpôs a
encosta

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e parando, relinchou e abanou-se na frente dos homens. O laço atrás ainda vinha a arrastar, mole e solto. Já não havia nada preso a ele.
Bostil avançou lentamente. Ele compreendia a tensão que se apoderara de Slone. ele sabia por que aquelas mãos fortes, que recolhiam o laço lentamente, tremiam como
varas verdes.
Bostil pousou a mão no garanhão vermelho - dando-lhe palmadas no dorso. Então abraçou Slone perto e com força. E encarou os seus companheiros.
- Rapazes, vocês acham que Cordts está metido nisto? - perguntou ele.
- Não, Cordts está fora disto - replicou Holley. - Mas deve ter sabido disto e abandonou Sears ao seu destino. Foi sem dúvida o passeio perfeito para um ladrão de
cavalos.
Bostil mandou Holley e Farlane à frente para procurarem Cordts e Hutchinson e os seus homens, contar-lhes o que acontecera a Sears e avisá-los para se irem embora
antes que os vaqueiros soubessem destas novidades.
Quando Bostil e os seus convidados chegaram aos currais, Holley esperava com Farlane e outros homens.
- Chefe - disse Holley -, Cordts e o seu pessoal não chegaram a vir. A última vez que foi visto por alguns navajos ia a caminho das ravinas.
Wild Fire não ia para o celeiro e Slone conduziu-o até a um grande e bem murado curral. Bostil esperava falando com alguns amigos, até que Slone regressou, e então
dirigiram-se à casa.
Bostil parou à porta e sussurrou:
- Vamos deixar que as mulheres ignorem o que aconteceu a Sears, pelo menos hoje à noite.
Então conduziu-os através da porta enorme até à sala de estar. Havia luzes pendentes nas paredes e pequenos toros ardiam na lareira. Lucy veio ao encontro deles,
vestida com o seu melhor vestido branco.
Lucy cumprimentou Slone da mesma maneira que aos outros. Slone olhou-a com um embaraço mal disfarçado.
- Que... que aconteceu? - perguntou ela.
- Mas. nada - replicou Slone lentamente. - Eu é que estou exausto. Lucy olhou de Slone para o seu pai.
- Bem, querida Lucy - replicou Bostil -, não aconteceu nada que te possa preocupar. O jovem Slone apanhou um pequeno susto com o seu cavalo. Wild Fire está seguro
lá no curral, e será guardado como o King e o Sarch. Slone precisa de beber e de algo para comer, assim como todos nós.
A cor e sorriso voltaram à face de Lucy, mas Bostil notou que, enquanto os servia e respondia sagazmente aos elogios, ela olhou firmemente e mais de uma vez para
Slone. "Ela era persistente", pensou Bostil, e enfureceu-o um pouco o interesse que ela mostrava pelo vaqueiro desconhecido.
Então, jantaram com doze à mesa.

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As mulheres de três amigos de Bostil tinham estado a ajudar a tia Jane a preparar a festa e estavam alegres. Bostil não era muito dado a reuniões sociais - teria
preferido estar com os seus cavalos e com os seus vaqueiros-, mas nessa noite excedeu-se Como anfitrião, espantando a sua irmã Jane, que pensou evidentemente que
ele estava bêbado, e deliciando a sua filha Lucy.
Depois do jantar, Bostil e os seus homens saíram até ao Brackton, onde Slone e os vencedores receberiam os seus prémios.
- Mas, nunca tive tanto dinheiro em toda a minha vida - exclamou Slone, olhando incrédulo para o ouro.
Bostil estava divertido e satisfeito.
- Slone, eu vi que você não bebeu nada - disse com curiosidade.
- Não, eu não gosto de álcool.
- Joga?
- Gosto de uma pequena aposta... numa corrida-disse com franqueza.
- Slone, gostaria de trabalhar para mim? Slone parecia surpreendido.
- Bem, eu nunca trabalhei para ninguém - disse lentamente. - Eu não suporto estar amarrado. Você sabe, eu sou um caçador de cavalos.
- Claro que sei. Mas isso não faz diferença - continuou Bostil persuasivo. - Se nos dermos bem, poupará essas moedas que ganhou. Um vaqueiro vagabundo nunca constrói
curral.
- Obrigado, Bostil - replicou Slone. - Eu vou pensar nisso. Seria um bocado enfadonho voltar a perseguir cavalos, depois de ter conseguido Wild Fire.
Slone parecia embaraçado e continuava a olhar as moedas na palma da mão. Alguém tocou em Bostil, que se virou e viu Brackton a seu lado.
- Venha cá, enquanto eu tenho um minuto - disse Brackton, apanhando uma lanterna. - Tenho uma coisa para lhe mostrar.
Bostil seguiu Brackton e Slone foi também. O velhote abriu uma porta que dava para um pequeno quarto, meio cheio de mercadoria. A lanterna iluminava frouxamente
o aposento.
- Olhe ali - e Brackton dirigiu a luz para um homem que jazia no chão. Bostil reconheceu a pálida cara de Joel Creech.
- Brack, está morto?
- Não, não está, o que aliás seria muito bom para esta comunidade - replicou Brackton. - Está apenas desmaiado. Acima de tudo estava bêbado. Mas não é isso.
- Bem. e por que mo queres mostrar? - perguntou Bostil.
- Eu achei que devia vê-lo.
- E porquê, Brackton?
Brackton pousou a lanterna, e puxando Slone para fora, disse:
- Só um minuto rapaz - e fechou a porta.
- Joel está nas minhas mãos, desde que a corrente lhe cortou o caminho para casa - disse Brackton. - E tem sido um problema.

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Chorou como um bebé que perdeu a mãe. Então fica com um olhar selvagem e anda de trás para a frente. Uma vez disse: "Os cavalos de meu pai vão morrer à fome, e eu
vou matar alguém." Estava fora de si e perigoso. Bem, eu estava preocupado, mas tudo o que pude fazer foi esconder as minhas armas.
"Na noite passada apanhei-o a conspirar com mais alguns homens no escuro, atrás da loja. Debandaram todos, excepto Joel, mas eu reconheci Cordts. Eu não gostei nada
disto. Joel estava a tramar alguma. E, quando um dos vaqueiros o chamou, ele disse: "Esse barco não foi arrastado. E se os cavalos do meu pai morrerem, eu vou matar
alguém."
Brackton pegou na lanterna e colocou uma mão na porta, pronto para sair.
- Então um vaqueiro esmurrou Joel, não vi quem foi, o Joel desmaiou. Eu arrastei-o para aqui. E como vê, ele ainda não voltou a si.
- Bem, Brackton, o rapaz é maluco.
- Também acho. E eu receio que nos queime a todos, ele é doido por fogo. Talvez faça alguma!
- É sem dúvida um problema. Bem, veremos - replicou Bostil soberbamente.
E saíram. Slone estava à espera. Então Bostil chamou os convidados, e com Slone regressou a casa.

Bostil despiu-se no escuro, e estava bem-humorado quando Lucy veio ao seu quarto para lhe desejar as boas noites.
- Olá, filha - disse ele. - Não ficas envergonhada ao olhares para o teu pobre e velho pai?
Lucy olhou-o duvidosa.
- Eu pensei que seria engraçado surpreendê-los a todos. Era a minha grande chance de ganhar ao King. Oh, que bom que teria sido. Pai, eu ter-lhe-ia ganho da mesma
maneira que venci os outros.
- Não. não terias - declarou Bostil.
- Pai. Wild Fire pode vencer o King.
- Nunca, rapariga. Bater num cavalo manso e desviá-lo não é ganhar-lhe numa corrida.
Então pai e filha, como já era costume, discutiram, ele persistente, imperturbável, ela com o coração e os olhos faiscantes. Contudo, desta vez foi diferente, pois
acabou com Lucy a dizer que Bostil nunca iria arriscar uma nova corrida. Isto irritou Bostil. e foi preciso fazer um esforço para controlar o seu temperamento.
- Deixa lá isso agora. Diz-me tudo acerca de como salvaste Wild Fire e Slone.
Lucy contou-lhe toda a história prontamente.
- És sem dúvida uma rapariga danada. Lucy - disse quando ela acabou, - Acho que não posso culpar Slone por se ter apaixonado.
- Quem disse isso? - perguntou Lucy.

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- Ninguém, mas é verdade não é?
- Sim. pai. é verdade - respondeu ela com altivez.
- Bem. não precisavas de mo dizer, mas ainda bem que o disseste. - E retomou o seu tom de troça: - Outro vaqueiro apanhado. Eu teria vergonha de brincar com estes
pobres coitados.
- Pai.
- És uma rapariga sem coração; tal como a tua mãe antes de me conhecer.
- Não sou nada. Nem acredito que a mãe o fosse - retorquiu Lucy. Era fácil fazê-la irritar.
- Bem. tu fizeste mal em ir todos os dias para junto de Slone, porque, jovem dama. se ele não tiver a coragem de me pedir a tua mão, eu bato-lhe com força.
- E então seria um bruto - redarguiu Lucy.
- Bem. talvez - respondeu Bostil. - Mas eu não posso esperar que ele se cale.
- Ele tenciona pedir-lhe.
- Hum.
Lucy estava ruborizada.
- Ele disse que nunca me teria deixado ir sozinha se não me amasse, e quando os nossos vaqueiros e vizinhos soubessem e falassem, ele queria que eles soubessem que
te iria pedir para casar comigo.
- Bem. ele é um jovem às direitas - disse Bostil. - Isso faz que eu o trate decentemente, e assim quando ele me vier falar eu deixo-o ir com um não.
- Pai. eu disse não... por mim mesma - murmurou ela.
- Com que então ele pediu-te. hem? Bem, bem. Quando?
- Hoje. nas rochas, onde estava à minha espera com Wild Fire. Ele... ele...
Lucy correu para os braços do pai. e a sua frágil figura tremia. O coração dele adoçou-se e ele apertou-a.
- Então, rapariguinha, conta lá - animou ele.
- Ele quebrou a sua promessa.
- Hum. Que pena. E como?
- Ele... ele. - Lucy parecia ter perdido a língua e sentou-se calada. Então olhou, de novo furiosa.
- Há dias eu disse-lhe que gostava dele - continuou. - Mas proibi-o de falar nisso. Ele prometeu. Eu queria esperar até ao fim das corridas... até ter arranjado
coragem para to confessar. E ele faltou à palavra. Hoje enquanto me ajudava a subir para Wild Fire, perdeu a cabeça.
"Puxou-me. apertou-me e beijou-me. Oh. foi horrível... que vergonha! Então eu restituí-lhe uma coisa que ele me tinha dado. E disse-lhe que o odiava, e disse-lhe
que não.
- Mas levaste o seu cavalo na corrida - notou Bostil.

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Lucy abanou a cabeça.
- Não pude resistir.
Bostil afagou-lhe a cabeça brilhante.
- Bem. a mim parece-me que Slone não agiu assim tão mal, considerando que tu lhe disseste que gostavas dele.
- Nunca lho perdoarei - gritou Lucy com paixão. - Odeio-o. Um homem que falta à sua palavra, numa coisa, é bem capaz de faltar noutras.
- Bem. ouve. Estou prestes a confessar que esse teu vaqueiro é muito ágil. E, Lucy, se hoje não tivesse sido tão ligeiro com o laço como está apaixonado, o teu velho
pai poderia estar morto.
Ela ficou tão branca quanto o seu vestido.
- Oh. pai. Eu sabia que algo tinha acontecido - gritou, correndo para ele.
Então Bostil contou-lhe como Dick Sears o ameaçara e como Slone o derrotou. Contou a história baralhada, mas eloquentemente, com o calão próprio dos vaqueiros.
Lucy beijou-o e sem dizer uma palavra voou para fora do quarto.
Bostil olhou-a:
- Maldito seja eu - disse, enquanto atirava uma bota contra a parede. -- Acho que nunca a deixarei casar com Slone, mas tinha de lhe dizer o que penso dele.


CAPÍTULO XIV

A AQUISIÇÃO DE SLONE


Slone jazia completamente desperto debaixo de uma janela aberta, observando as estrelas que brilhavam através da folhagem murmurante dos arbustos. Algures, um cão
solitário uivava. De muito longe chegava-lhe o ruído da água corrente.
Slone era hóspede de Bostil há cinco dias e todos eles tinham sido um tormento.
Na manhã a seguir às corridas, Lucy enfrentou-o. Nunca esqueceria
os seus olhos, a sua voz. "Bendito sejas, por teres salvo o meu pai", tinha
dito ela. "Foste corajoso. Mas não deixes que o pai te engane. Não
acredites na sua bondade. Ele só deseja Wild Fire, e se não o conseguir,
odiar-te-á."
Este discurso de Lucy tornara os dias seguintes muito difíceis para Slone. Bostil cumulava-o de presentes e atenções e não cessava de insistir para os aceitar. Se
não fosse Lucy, Slone tê-los-ia aceite.

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O grande garanhão, pelo qual Slone quase sacrificara a vida, era como um espinho na sua carne. Slone jazia ali na escuridão, preocupado, quente, virando-se de um
lado para o outro, ou olhando o céu cheio de estrelas, infeliz e triste por causa daquele cavalo.
Como se sentira glorioso ao oferecer o garanhão a Lucy. Então, na manhã da corrida, agiu de uma maneira inesperada, incompreensível e selvagem e a culpa fora só
sua. Ele tinha dado a sua palavra a Lucy, quando, dia após dia, sentia o amor abrasá-lo, até àquele momento fatal, quando lhe tocou, para a ajudar a subir para Wild
Fire. Isso transformou-o num louco. Ele tinha-a enlaçado nos seus braços, apertara-a contra si, a sua cara junto à dela, e beijara-lhe os lábios doces até ficar
completamente cego.
Então ficou a saber a pequena fúria que ela era. Ela não compreendeu que este acto fora descontrolado. E ele não compeendeu o que estava a fazer até ser demasiado
tarde. E ela acabara dizendo:
- Eu montarei Wild Fire na corrida, mas não o quero, nem te quero a ti. No sexto dia da sua estada no rancho de Bostil, Slone ergueu-se com
a sua personalidade já reafirmada. Não poderia permanecer mais tempo em casa de Bostil, a não ser que aceitasse a sua oferta, e nem pensar nisso era bom.
Bostil estava no curral com Wild Fire. Era a segunda vez que Slone o
ia ali encontrar.
- Gosto do teu cavalo - disse Bostil com rude franqueza.
- Bostil, tenho muita pena, mas não posso aceitar o seu emprego - disse Slone com firmeza.
- E por que não? - Perguntou Bostil.
- Não posso trabalhar para si - replicou Slone, cortante.
- Tem algo haver com Lucy? - inquiriu Bostil.
- De que maneira? - retorquiu Slone.
- Bem. tu foste doce para ela, e ela não te quis - respondeu Bostil.
- Sim. eu sou doce para Lucy e ela não me quer - disse Slone directamente. - Eu pedi-lhe para me deixar vir ter consigo, e dizer-lhe que queria casar com ela. Mas
ela opôs-se.
- Bem. ainda bem que não vieste, porque eu poderia... - Bostil fez uma pausa e continuou: - Coragem não te falta, Slone. Que tens para oferecer a Lucy?
- Nada, excepto... Mas isso não interessa- replicou Slone, irritado pelo tom de desprezo de Bostil. - Fico contente em que saiba isso.
Bostil virou-se para olhar de novo Wild Fire e fixou-o longamente. Quando o olhou de novo era um outro homem.
- Slone, dou-te cem cavalos e mil dólares por Wild Fire.
- Não - disse Slone.
- Dou-te o dobro - retorquiu hostil.
- Não.
- Eu...

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- Poupe o fôlego, Bostil - cortou Slone. - Você não me conhece. Mas deixe-me dizer-lhe, não pode comprar o meu cavalo.
As veias do pescoço de Bostil tremeram e incharam; a sua face contraiu-se fortemente, os seus olhos reflectiam um olhar doentio. Slone foi buscar o seu outro cavalo,
Nagger, e, trazendo-o para fora, viu que Bostil se tinha afastado. A fúria do velho desaparecera aparentemente ou estava camuflada.
- Veja lá - começou ele com uma voz incerta. - Não seja tolo em deixar escapar a grande oportunidade da sua vida. Eu...
- Bostil, a minha única chance arruinou-se, e você sabe bem porquê - replicou Slone, enquanto atava o arreio de Nagger a Wild Fire. - Não tenho ressentimentos, mas
não posso vender o meu cavalo. E não posso trabalhar para si porque, bem, porque iria causar problemas.
- De que espécie? - perguntou Bostil.
Holley, Farlane e Van tinham-se aproximado e assistiam a isto de boca aberta.
- Nós acabaríamos por fazer correr King e Wild Fire, não era?
- E supondo que o faríamos? - retorquiu Bostil desafiador.
- Wild Fire venceria o seu favorito, e você não iria gostar - respondeu Slone.
- Seu caçador de cavalos - rosnou Bostil -, o teu Wild Fire pode ser um assassino, mas não conseguirá vencer o King numa corrida.
- Desculpe, Bostil, mas Wild Fire venceu o King.
- Seu mentiroso - declarou Bostil dando um tremendo pulo em frente. Slone apercebeu-se então de quão perigoso era na realidade aquele homem. - Isso não foi nenhuma
corrida, O teu cavalo selvagem afastou King do caminho.
- Sage King tinha o comando, não tinha? Por que não o manteve? Bostil explodiu numa torrente de frases sem nexo. Quando Bostil
ficou sem fôlego, Slone disse:
- Estamos ambos a gastar saliva. Eu não estou para que me torne a chamar mentiroso. Mande o seu vaqueiro montar King e venha cá. Eu...
- Slone, cala-te e desaparece - interrompeu Holley.
- Vá para o inferno - respondeu-lhe Slone friamente.
Houve uma pausa de silêncio, durante o qual Slone mediu Holley com o olhar.
- Que têm contra mim? - perguntou Slone. - Vão-me matar por levar o que é meu? Holley, você e os seus parceiros tremem de medo perante este velho diabo. Mas eu não,
e fiquem fora disto.
- Bem. filho, não precisa de se irritar - replicou Holley apaziguadoramente. - Eu só estava a evitar que você dissesse algo de que mais tarde se arrependesse.
- Qual arrepender. Eu vou fazer correr King, ou obrigá-lo a engolir o que disse.

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- Então Slone virou-se para Bostil: - Vá lá. Vá buscar King. Deixe que os seus homens julguem a corrida. Bostil lutava para se controlar e para poder falar.
- Não, não vou deixar que esse assassino vermelho magoe de novo King.
- Bah! Está com medo. Você sabe que desta vez não seria uma rapariga a montá-lo. Você sabe que ele pode bater King, e é por isso que o quer comprar.
Slone respirou fundo. De repente apercebeu-se, pela palidez de Bostil, que fora longe de mais.
- Vou-me embora, Bostil.
Slone acenou um adeus aos vaqueiros e, virando-se, conduziu os dois cavalos pelo prado até à casa. Ao avistar Lucy debaixo dos algodoeiros acalmou a cólera e sentiu-se
arrependido. Lucy viu-o chegar e, como de costume, estava para evitar o encontro, quando ao ver os cavalos, ou outra coisa qualquer, resolveu aproximar-se.
Slone parou.
- Lucy, agora é que foi, já fiz asneira.
- Que queres dizer? - gritou ela.
Então Slone relatou-lhe tudo o que fora dito e, antes de concluir a sua história, o seu coração apertou-se perante a face acusadora e os olhos da moça.
- Tu disseste isso ao pai - gritou ela admirada e receosa. - E bem que ele o merecia. Mas antes não o tivesses feito. Quem dera que não o tivesses feito.
- Porquê? - perguntou Slone. Mas ela não respondeu.
- Para onde vais? - perguntou.
- Para dizer a verdade, não sei - replicou Slone serenamente. - Vou buscar as minhas coisas ao meu quarto. É tudo o que os meus confusos pensamentos me permitem
fazer.
- As tuas coisas? Oh! Queres dizer que... que te vais embora de vez?
- Claro. Que mais posso fazer?
- Lin, aí vem o pai. Ele não pode ver-me. Tenho de fugir... Lin, não deixes o planalto... não vás, não...
Então ela voou para dentro da casa e desapareceu. Slone ficou ali emocionado e estático. Nem o passo pesado de Bostil lhe quebrou o transe, e o encontro teria sido
inevitável se Bostil não tivesse enveredado pelo caminho que conduzia às traseiras da casa.
Slone apressou-se até ao pequeno quarto que tinha sido o seu e juntou os seus escassos pertences. Teve o cuidado de deixar os presentes, as armas, as luvas e os
outros acessórios que Bostil lhe tinha oferecido. Depois de ter terminado, saiu e conduziu os cavalos até à aldeia.
Slone dirigiu-se até à loja de Brackton e deixou os cavalos a pastar ali perto,

97

numa vedação alta. Sentiu que os cavalos estavam ali razoavelmente seguros, mas tencionava manter-se atento.
Mais tarde, Slone meteu conversa com um homem que dizia chamar-se Vorhees. Depressa descobriu que Vorhees possuía uma pequena casa, um curral e um quintal num lugar
agradável debaixo da falésia, e estava ansioso por a vender barato, pois tinha tido uma óptima proposta em Durango, onde morava a sua família. O que mais interessou
Slone foi o comentário do homem sobre o curral, que dizia ser inacessível.
Subiu até ao sítio de Vorhees e ficou muito satisfeito com tudo, especialmente com o curral, que tinha sido construído por um homem que receava ladrões de cavalos
tanto como Bostil. A vista da porta da pequena cabana era incomparável.
- Vorhees, você está a falar a sério? - perguntou ele. - O dinheiro que pede é-muito pouco.
- É suficiente, e para gastar - replicou o homem. - E era um favor que me fazia.
- Bem, eu faço-lho - disse Slone rindo um pouco irracionalmente. - Escusa é de dizer para já que fui eu que a comprei.
O negócio ficou consumado, ficando Slone ainda com metade do dinheiro que tinha ganho na corrida. Sentiu-se radiante. Depois de beber da nascente que saía por debaixo
da falésia, pensou para consigo que só isto valia todo o dinheiro.
- Dá directamente para o rancho de Bostil - disse para consigo alegremente. - Como irá ele ficar... E Lucy? Que irá ela pensar?
Quando voltou à loja de Brackton estava exultante e bem disposto. O velho comerciante fez-lhe sinal e apontou para um jovem de aspecto grosseiro, sentado sombriamente
num caixote. Slone reconheceu Joel Creech.
- Diga lá - disse num impulso. - Quer ajudar-me a transportar alguns mantimentos?
- Olá! - respondeu Creech, levantando a cabeça. - Com certeza. Slone adquiriu uma série de mantimentos, e com a ajuda de Creech
carregou-os até à cabana da falésia. Foram precisas três viagens para transportar toda a mercadoria, e no entanto Creech pouco dissera. Slone ofereceu-lhe dinheiro,
mas ele recusou.
- Eu ajudo-o a instalar-se e comerei um pouco - disse ele. - É bonito isto aqui.
Ele parecia racional e sensível à amabilidade. Slone descobriu que Vorhees deixara a cabana tão limpa que pouco havia para limpar. Uma lareira de pedra precisava
de ser consertada, e havia lenha para cortar.
- Joel, acenda o fogo, enquanto eu vou buscar os meus cavalos - disse Slone.
O jovem Creech assentiu e Slone deixou-o. Não foi fácil apanhar Wild Fire. nem tão-pouco o foi metê-lo no novo curral; Creech observava os cavalos da porta.

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- Grande cavalo selvagem. Ele fez o que Blue ia fazer... ganhar ao maldito King do Bostil.
Creech meneou a cabeça. Slone teve pena dele, mas desejou que estivesse longe dali. Contudo Creech ficou e tornou-se mais estranho e falador à medida que comiam.
Repetia as coisas muitas vezes, falava sem nexo e deu algumas informações imprecisas. Slone, que queria saber tudo o que pudesse, encorajava Creech a falar do seu
pai, dos seus cavalos, do barco, do rio e, finalmente, de Bostil.
Slone ficou convencido de que o jovem Creech, quer fosse maluco ou não, sabia que os cavalos do seu pai estavam condenados e que o barco fora sabotado. Slone não
conseguia perceber o porquê desta convicção. Por fim, Creech contou como tinha ido até ao rio um dia antes, como encontrara a corrente ainda baixa, como trepou pelas
rochas e, puxando as cordas do barco, descobriu que tinham sido cortadas.
- Está a ver, Bostil cortou-as, quando não precisava - continuou Creech, sensatamente. - Mas ele não sabia que a corrente viria tão depressa. Teve medo que viéssemos
buscar o barco nessa noite. Ele fazia tenção de levar as cordas cortadas. Mas não teve tempo.
- Bostil? - inquiriu Slone, enquanto olhava duramente para Creech. A dúvida de Slone fez que Creech se baralhasse e acabasse por ameaçar
misteriosa e desconexamente. Então Slone ouviu o nome de Lucy.
-- Que tem a rapariga a ver com isso? - perguntou zangado. - Se quer falar comigo, não use o nome dela.
- Eu uso o nome dela, quando quiser - berrou Creech.
- Não comigo.
- Sim, consigo, senhor. Não me interessa nada.
- Seu pateta! - exclamou Slone impaciente e irado. Creech abaixou-se.
- Eu, pateta? - berrou. - Talvez não seja assim tão maluco. Você está apaixonado por Lucy Bostil. Eu vi-o com ela nas rochas na manhã da corrida. Vi o que lhe fez.
E vou contar tudo. E hei-de apanhar Lucy Bostil e despi-la toda e, quando acabar com ela, ato-a a um cavalo e deito fogo à erva. Por Deus, hei-de fazê-lo.
- Maluco ou não, aqui vai - murmurou Slone e, levantando-se, atirou Creech para fora da porta com um encontrão, e então pontapeou-o o resto do caminho.
Creech ergueu-se e correu, virando-se duas vezes para trás. Então, desapareceu por entre as árvores.
Vários dias se passaram sem que Slone desse por isso. O novo trabalho cansava-o tanto que ia cedo para a cama e dormia como um tronco. Se não fosse a sempre presente
preocupação e ansiedade por Lucy, ele seria feliz como nunca o tinha sido. Muitas vezes encontrou-se

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a olhar lá para baixo na esperança de ver Lucy Bostil entre as árvores. Mas nunca a avistou.
Uma manhã, Slone teve uma visita - o velho Brackton.
- Como vai, Slone? Vim ver como se estava a dar por aqui - disse ele. Slone abriu as mãos e explicou-lhe em poucas palavras.
- Então tomou conta do lugar, hem? Já o imaginávamos. Mas Vrake calou-se. De facto ele estava misterioso. - Brackton sentou-se e olhou Slone com interesse. - As
pessoas têm falado de si - disse directamente.
- Sim?
- Você parece ser um tipo muito misterioso, Slone. Um tipo de quem eu gosto. Por isso lhe vim dizer que seria sensato se desaparecesse.
- O quê? - exclamou Slone.
- Por que bateu no pobre Joel Creech? - perguntou Brackton.
- Ele teve o que merecia - retorquiu Slone.
- Bem, Joel anda a dizer umas coisas esquisitas a seu respeito, por exemplo, como você se aproveitou da pequena Lucy Bostil. Agarrando-a e maltratando-a como ele
o viu fazer.
- Maldito maluco - murmurou Slone, levantando-se e começando a caminhar.
- Joel está em minha casa. Ele ficou com umas ideias depois de você lhe ter batido, e ainda não terminou. Mas ele fala de mais para vaqueiros. Van Sickles anda à
sua procura. E hoje quando eu estava sozinho com Joel ele contou-me mais coisas a seu respeito.
- Que mais disse o tolo?
- Onde estava na noite da enchente?
- Se é isso que lhe interessa, eu estava entre as rochas, lá em baixo, na planície. Ouvi a enchente muito antes dela aqui ter chegado - replicou Slone deliberadamente.
Brackton desviou o olhar e levantou-se abruptamente, como se o tempo se tivesse esgotado.
- Bem. aceite o meu conselho e parta - disse ele afastando-se.
- Brackton, se a sua intenção é boa, fico-lhe muito agradecido - disse lenta e ponderadamente Slone. - Mas não aceitarei o seu conselho.
- Como queira - ajuntou Brackton, friamente, e foi-se embora. Slone tentou rir-se da entrevista, mas a preocupação persistiu durante
o resto do dia. Depois do jantar decidiu caminhar até à vila e tê-lo-ia feito se não fosse ter visto um homem que subia na sua direcção. Quando reconheceu o vaqueiro
Holley, pressentiu problemas.
- Como está, filho? - cumprimentou o vaqueiro. - Fico cansado de subir isto tudo.
- Olá, Holley, como está? - respondeu Slone. - Sente-se.
- Bem, continuo ágil para a minha idade. Mas não trepo com a mesma facilidade. Hei!, isto aqui bate o panorama de Bostil.

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- Sim, é óptimo - replicou Slone bastante grosseiramente, enquanto se sentava no degrau da soleira.
- Slone, você não está ressentido... por eu o ter mandado calar no outro dia? - perguntou.
- Mas não, Holley. Não estou. Eu vi a sua perspectiva. Você tinha razão, mas Bostil enfureceu-me.
- Você meteu-se em maus lençóis, pois Bostil virou os vaqueiros contra si, e o ter batido em Creech revoltou a aldeia.
Slone hesitou.
- Bem, acho que é melhor dizer-lhe - continuou Holley - que Lucy quer saber se você bateu no Joel e porque o fez.
- Holley, ela pediu-lhe para você vir saber?
- Claro. Creech jura que o viu a si e a Miss Lucy no meio das rochas onde você se escondia com Wild Fire. Há alguma verdade nisso?
- perguntou Holley directamente. - Imagino que você lhe bateu por Joel lho ter atirado à cara.
- Foi o que ele fez, e eu açoitei-o - replicou Slone com dureza.
- Fez bem. Mas o que eu quero saber é que se é verdade o que Joel diz ter visto?
- É verdade, Holley. Mas o que eu fiz não foi tão mau... tão mau como ele o fez parecer.
- Bem, eu sabia isso. Eu sei há muito tempo que Lucy gosta de si
- retorquiu o outro vaqueiro com amabilidade. Slone levantou a cabeça devagar, incrédulo:
- Holley. você não está a falar a sério.
- Bem. estou. Durante dezoito anos eu tenho sido uma espécie de irmão mais velho para Lucy Bostil. Conheço-a melhor do que ninguém. E ultimamente ela tem andado
muito diferente. Anda infeliz e preocupada.
- Mas. Holley, isso não quer dizer...
- Eu sei que não - continuou Holley quando Slone se calou. - Eu acho que ela gosta de si. E sou seu amigo, Slone.
- Obrigado, Holley - replicou Slone, inseguro.
- Lucy vai ouvir o que Joel Creech anda a dizer. Van Sickles jurou que lhe vai contar, e depois o vem correr a chicote.
- Ah. sim? - resmungou Slone sombriamente.
- Eu acho que Lucy adivinhou a razão por que você bateu no Joel. Mas ela quer ter a certeza. Agora, Slone, eu digo-lhe porquê.
- Isso assusta-me - disse Slone. - Holley, eu amo a rapariga. Assim eu ... eu não a insultei. Bostil nunca compreenderá. E que vai ele fazer quando souber?
- Bem. deixe a sua arma em casa e combata Bostil. Você é arrojado. Claro que ele vai lutar, mas talvez você o consiga bater - Holley riu-se como se aquela ideia
lhe desse imenso prazer.
- Combater Bostil? Lucy odiar-me-ia.

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- Não. Você não conhece a rapariga. Se o velhote o perseguir, Lucy gostará ainda mais de si. Ela é tal e qual como ele nalgumas coisas. - Holley puxou de um velho
cachimbo preto, encheu-o e acendeu-o, ficando mais pensativo. - Não foi só Lucy que aqui me mandou. Bostil tem andado a insistir há muitos dias. Mas eu tinha evitado
até que Lucy me apanhou.
- Bostil mandou-o? Para quê?
- Acho que pode adivinhar. Ele não consegue dormir a pensar no seu cavalo vermelho. Bostil ainda não perdeu a esperança de conseguir Wild Fire e, Slone, você é sensato,
e se Bostil não o conseguir comprar, você não vai poder continuar aqui.
- Eu sou sensato. Mas não venderei Wild Fire - replicou Slone decidido. - Wild Fire não é meu. É dela.
- Que diabo! - gritou Holley. quase deixando cair o cachimbo.
- Eu dei-lhe Wild Fire. ela aceitou-o. Estava feito. Então... então eu perdi a cabeça e enfureci-a. E ela disse que o levaria na corrida, mas não ficaria com ele.
Mas é dela.
- Oh, estou a perceber,
- Se eu sair daqui e deixar Wild Fire para Lucy, acha que ela vai ficar com ele? Bostil não lho iria tirar?
- Bem, filho, se ele tentasse isso com ela, Lucy saltaria para Wild Fire. metia-se a caminho até o encontrar.
- Holley, tudo isto... você é bom - disse Slone. - Eu... eu...
- Esteja calado - interrompeu-o o vaqueiro, secamente. - Pelo que vejo isso é a sua única fraqueza. Você fala de mais.
Holley começou a descer com as suas longas esporas a tinir no íngreme pavimento.
No dia seguinte Slone trabalhou todo dia esperando que chegasse a noite, na expectativa da visita de Holley. Ele tentava resistir, mas em vão, à doce e tentadora
esperança de receber uma mensagem de Lucy. Mas Holley não apareceu, e Slone deitou-se tarde, doente e desapontado.
O dia seguinte ainda foi pior. Slone achou o trabalho enfadonho, embora o fizesse. No terceiro dia descansou e sonhou, tornando-se temperamental e céptico. No quarto
dia descobriu que necessitava de mantimentos da loja.
A porta de Brackton estavam alguns cavalos de arreios tombados e vaqueiros espalhados por aqui e por ali. Alguns destes homens tinham sido simpáticos para Slone
em ocasiões anteriores. Nesse dia parecia não o terem visto.
Lá dentro, Slone encontrou Wetherby, o jovem de Durango. Slone cumprimentou-o, mas ele apenas lhe respondeu com um olhar insolente. Slone não olhou para o homem
com quem Wetherby estava a falar. Havia pouca gente dentro da loja e Brackton esperava.
Brackton estava sem fazer nada, mas não parecia disposto a atender Slone. Então este caminhou até ao balcão e pediu a mercadoria.

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- Tem dinheiro? - perguntou Brackton, como se não tivesse
nenhuma confiança nele.
- Sim - respondeu Slone, corando perante o insulto que ele sabia
ter sido ouvido por Wetherby.
Brackton deu-lhe a encomenda e recebeu o dinheiro sem proferir palavra. Tinha a cabeça baixa.
Slone, humilhado, apressou-se a sair e com a pressa esbarrou em alguém. Slone levantou a cabeça. Bostil. O velho vaqueiro olhava-o friamente.
- Bem, você está bêbado? - perguntou.
- Bostil. você sabe que eu não bebo.
- Hum! Eu sei uma série de coisas a seu respeito, Slone. Ouvi dizer que comprou o sítio de Vorhees.
- Sim.
- Ele disse-lhe que estava hipotecado a mim pelo dobro do seu valor?
- Não. não disse.
- Ele deu-lhe algum papel?
- Não.
- Bem. se lhe interessa, eu mostro-lhe os papéis que provam que a
propriedade é minha.
- Está bem. Bostil. se é sua é sua - disse ele calmamente.
- Acho que já o teria tirado de lá para fora se não pensasse que poderíamos chegar a um acordo.
- Não podemos fazer nenhum acordo, Bostil - replicou Slone com
segurança.
- E por que não? - perguntou Bostil. - Se você não fosse tão casmurro poderíamos. E deixe que lhe diga que há muitas razões para fazer um acordo comigo.
- Um acordo. Acerca de quê?
- Acerca do seu cavalo vermelho.
- Wild Fire. Não há acordos, Bostil.
- Talvez eu lhe diga algo que o vai fazer mudar de ideias - disse
Bostil.
- Não acredito - ripostou Slone. - Eu correrei Wild Fire contra
King. mas é tudo.
- Corrida. Nós aqui não fazemos corridas sem motivo. Você gaba-se de correr comigo, e é um vaqueiro medíocre. Você nem teria roupa nem botas se não fosse a minha
filha a levar-lhas.
Os vaqueiros que estavam por detrás de Bostil riram-se.
- Sim. Bostil, é como dizes - respondeu Slone e a sua voz parecia encher a sala. - Mas está redondamente enganado quando diz que eu não tenho nada para apostar numa
corrida.
- Que tem para apostar?
- A minha vida e o meu cavalo. Bostil empalideceu.

103

- Contra o quê? - perguntou roucamente.
- A sua filha Lucy.
Um momento de surpresa tornou Bostil mudo e imóvel. Então, a sua enorme figura tremeu e agitou-se como um touro enfurecido.
Slone viu a tempestade a aproximar-se, não fez nenhum gesto para a evitar. O enorme punho apanhou-o na boca e na face e estatelou-o no chão. Slone sentiu a vista
a fugir-lhe por um bocado e, consequentemente, ficou imóvel. Mas não perdeu a consciência. Começou a levantar-se com o cérebro a andar à roda. Onde estava a sua
arma? Tinha-a deixado em casa. Mas por isto ele teria morto Bostil. Já matara uma vez. Poderia fazê-lo de novo. Mas Bostil era o pai de Lucy.
Slone recolheu o pacote dos mantimentos, e sem olhar para os homens apressou-se a sair. Quando chegou à cabana fechou-se dentro e deitou-se. Era escuro quando se
recompôs, e saiu para dar de comer e beber aos cavalos. Quando regressou à cabana estava um homem na soleira. Slone reconheceu a figura de Holley e depois a sua
voz.
- Filho, hoje é que foi o diabo.
- Holley, não se vire contra mim - gritou Slone. - Eu perdi a cabeça.
- Não fale tão alto - murmurou o vaqueiro. - Só tenho um minuto. Aqui está, uma carta de Lucy. E não fique com a ideia que eu estou do seu lado.
Slone pegou na carta com os dedos a tremer.
- Filho, eu estou a trair o patrão, neste momento - murmurou Holley, roucamente. - E ao mesmo tempo estou a fazer o jogo de Lucy. Se Bostil descobre, mata-me. Eu
não posso ser apanhado aqui. Mas não o perderei de vista para onde quer que você vá.
Holley desapareceu ligeiro na escuridão, deixando Slone com o coração aos pulos.
A carta era curta, escrita com lápis leve na parte de trás de uma folha de calendário. Slone não conseguia ler rapidamente - todos aqueles anos no deserto - e aquela
pressa de ler o que Lucy escrevera, baralhava-o. Ao princípio todas as palavras se misturavam:

"Vem depressa até ao campo dos algodoeiros. Eu vou lá ter. O meu coração está a ceder. É mentira... é mentira o que eles dizem. Eu jurarei que estavas comigo na
noite em que o barco desapareceu. Eu sei que não o fizeste. Oh, vem. Eu espero por ti. Fugirei por ti. Amo-te."

104


CAPÍTULO XV

NOS CAMPOS DE ALGODÃO


Colocou a preciosa carta dentro da camisa, apertou o cinto com a sua arma e, apagando a luz, saiu.
A lua crescente acabara de aparecer. A vila, as cabanas e as árvores brilhavam, prateadas, ao luar.
Slone manteve-se pelo sotavento da falésia e circundou-a de maneira a ficar sobranceiro à aldeia, onde havia o perigo de encontrar alguém. No entanto, teve de sair
da sombra e caminhar ao luar pelo prado. Silencioso e ligeiro continuou, mantendo-se na sombra das árvores que iam aparecendo, até chegar à massa dos campos de algodão.
Meteu-se pelo meio das árvores, parando a cada passo para escutar.
Encontrou o estreito caminho, assombrado por figuras que se movimentavam, e seguiu-o furtivamente, com o ouvido e a vista apurados, parando ao mínimo ruído. Ele
conhecia bem o banco de que Lucy falara. Ficava num canto retirado, debaixo de árvores enormes, perto da nascente. Por fim atravessou a corrente, cheirou o fresco
aroma da água e viu uma árvore que se erguia acima das outras.
Então, uma esguia e branca figura deslizou por detrás da árvore gigantesca e voou ao seu encontro. Lucy atirou-se para os seus braços.
- Lin, Lin. Oh, estou... estou tão contente por te ver- murmurou ela. - Eu sei tudo do que te acusam, como os vaqueiros te têm tratado, como o meu pai te bateu.
Oh, como ele é bruto. Odeio-o por isso.
- Não faz mal, Lucy - murmurou Slone. - Eu não me importaria
de morrer por isto.
Suavemente passou-lhe a mão pela cara, afagando-a docemente na
boca e na face.
- Ah, ele bateu-te. E eu... eu vou beijar-te - suspirou ela. - Se
os beijos te curarem, ficarás curado.
Ela levantou a sua cara e beijou-o docemente várias vezes, até que o choque com os seus lábios em ferida que lhe tinha sido doloroso se tornou insensível. Então,
afastou-se dos braços dele, as mãos nos seus ombros, a face pálida, os olhos brilhando e sorriu-se, amorosa e apaixonadamente como se desafiasse o mundo a mudar
aquilo que tinha feito.
- Vem para a sombra - murmurou ele, e com o braço à sua volta conduziu-a até ao grosso tronco da árvore. - É seguro estares aqu? por quanto tempo podes ficar?
- Eu zanguei-me com o meu pai, pela primeira vez, mas fi-lo - replicou ela. - Então meti-me no meu quarto, fechei a porta e saltei pela janela. Posso ficar o tempo
que quiser. Ninguém saberá.

105

o coração de Slone batia forte. Ela era sua.
- Diz-me então - começou ele calmamente -, diz-me o que aconteceu.
- Mas tu não sabes? - perguntou ela, espantada.
- Só sei que por alguma razão eu estou arrumado aqui na aldeia. Não pode ser por causa de Joel.
- Mas, Lin, há mais. Oh, como odeio dizer-to - murmurou ela, apaixonadamente. - Eu pensei que sabias, Joel Creech jurou que foste tu que sabotaste o barco.
- O louco - exclamou Slone, e começou a rir-se de raiva e do ridículo de tal afirmação. - Lucy, isso é conversa de maluco.
- Lin, a gente daqui é esquisita - resumiu ela mais calma. - Brackton acreditou-o. Van também. Eles disseram ao meu pai. E ele, o meu pai. Deus o perdoe, agarrou-se
a isso. Agora toda a aldeia acredita que foste tu que mandaste o barco à deriva para os cavalos de Creech não poderem participar na corrida.
- Lucy, se isso não fosse tão engraçado, eu ficaria tão furioso, tão furioso... -explodiu Slone.
- Não tem graça nenhuma. É terrível. Eu sei quem cortou aqueles cabos, Holley sabe, o pai sabe, e, oh, Lin...
- Ouve querida - interrompeu ele -, o teu pai é um bom homem. Eu compreendo-o. Tenho pena dele. E se atirou as culpas para mim, não faz mal, eu suporto isso. Mas
se eles sabem que foi o teu pai, e se os cavalos de Creech morrem, bem é a desgraça para ele e para ti.
- Lin Slone, tu vais aceitar as culpas - murmurou ela.
- Claro que vou - respondeu Slone. - Eu não posso ficar pior.
- Lin. eu amo-te tanto que até dói - e parecia que se ia atirar de novo para os seus braços. - Mas tu não passarás essa vergonha. Eu não deixo. Vou dizer ao meu
pai que estava contigo naquela noite. Ele vai acreditar-me.
- Sim. e depois mata-me - exclamou Slone. - Meu Deus, Lucy, não faças isso.
- Ai, isso é que vou. E ele não vai matar-te, Lin, o pai tem um grande fraco por ti. Eu sei disso. Ele pensa que te odeia. Mas no seu coração isso não é verdade.
Se ele conseguisse Wild Fire, não saberia o que fazer em troca.
- Lucy, se algum dia tiver o azar de tornar a encontrar Bostil, serei surdo e mudo. E agora promete-me que não lhe vais dizer nada disso.
- Então, o que vamos nós fazer? - disse Lucy.
,- Bem. acho que só temos de esperar. Tu dizias na tua carta que farias tudo por mim. que... - Ele não conseguia falar, nem dizer o que estava a pensar.
- Se tiver de ser, partirei contigo - disse Lucy com paixão.
- Lucy, tu amas-me o suficiente?

106

Então, de novo os seus lábios se encontraram, as suas mãos entrelaçaram-se e ficaram silenciosos, colados um ao outro.
- Nós fugiremos, se for preciso - disse Slone baixinho. - Mas eu esperarei. Vou-me aguentar por cá. Aceitarei o que vier. Assim, talvez
não te desgrace mais.
- Eu disse a Van que estava muito orgulhosa por ter sido abraçada por ti naquele dia - replicou ela soltando uma gargalhada desafiadora, enquanto evocava a alegada
desgraça.
- Que queres dizer?
- Fiquei surpreendida quando me agarraste. E o meu coração batia, batia, batia tanto quando me abraçaste! E quando me beijaste eu, eu fiquei petrificada. Sabia que
tinha gostado e fiquei furiosa comigo mesma.
Slone deixou escapar um longo e profundo suspiro de encantamento.
- Aceitas de novo Wild Fire?
- Aceito, mas ninguém o deve saber. Então separaram-se.
- Agora deves partir - disse Slone, relutante. - Ouve, esqueci-me de te avisar acerca de Joel Creech. Não o deixes aproximar-se de ti. Ele é maluco e tem más intenções.
- Oh, eu sei, Lin. Terei cuidado. Mas não tenho medo dele.
- Tenho eu - disse Slone com nervosismo. - Há o Creech e o Cordts, ambos te ameaçaram.
- Eu tenho medo de Cordts - replicou Lucy com um arrepio -, mas o pai diz que não corrO perigo se tiver cuidado. E eu tenho. Quem me apanharia no Sarch?
- Tem cuidado e atenção - disse ele carinhosamente.
- Oh, Lin, tu precisas mais disso do que eu. Que vais tu fazer?
- Vou ficar naquela cabana, que até hoje eu pensei ser minha. E quando te torno a ver?
- Aqui, todas as noites. Espera até que eu venha - replicou ela.
- Boa noite, Lin.
Ele beijou-a e ficou a ver a sua gentil silhueta a desaparecer, branca
por entre a sombra escura.
No dia seguinte tentou trabalhar, mas descobriu que o lazer fazia o tempo correr mais depressa, pois podia sonhar. Na escuridão dos campos de algodão, tornou a encontrar
Lucy, tão ansiosa como ele por este encontro.
Nessa noite ficou a saber que Bostil partira para Durango com alguns vaqueiros. Esta viagem surpreendeu e aliviou Slone, pois Durango ficava a duzentas milhas de
distância, e uma viagem até lá, mesmo para cavaleiros experientes, demorava uns dias.
- Ele não me deixou ordens nenhumas - disse Lucy -, a não ser para me portar bem. Isto é portar-me bem? - murmurou ela, e deixou-se estar junto de Slone, audaciosa
e atormentada por este receio.

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Mas ele deixou ordens a Holley para me acompanhar e tomar conta de mim. Não é engraçado? Pobre Holley. Ele diz que odeia trair o pai.
- Fico contente por Holley olhar por ti - replicou Slone. - Ontem eu vi-te dirigires-te à planície no Sarch.
Na tarde do dia seguinte, Slone, ouvindo o barulho de cavalos não ferrados, resolveu sair para ver do que se tratava. Uma parte do prado ele podia ver claramente,
e no meio dele, Joel Creech, conduzindo os potros mais esqueléticos que Slone vira. Um homem, tão magro como os póneis, caminhava atrás. Joel Creech e o seu pai.
Levou-lhe um instante a apertar o cinto com a sua arma. Então Slone dirigiu-se ao Brackton através do prado.
Antes de Slone ter chegado à loja viu que alguns cavaleiros se dirigiam ao encontro dos Creech. Eram em maior número do que os que habitualmente frequentavam o Brackton
àquela hora. O velho comerciante saiu da loja e ergueu os braços. Podiam ouvir-se os vaqueiros, berrando, excitados. Slone aproximou-se, e à medida que se aproximava,
aumentava a velocidade.
- Montes de ossos - disse bem alto um vaqueiro.
Então Slone aproximou-se do grupo excitado. Brackton estava no centro, gesticulava e a sua fina voz erguia-se no céu.
- Creech, o que aconteceu a Peg e Roan? Valha-me Deus, homem. Não me digas que isso é tudo o que te resta da tua manada de cavalos?
Não se ouviu um barulho. Todos os vaqueiros estavam estáticos. Slone desviou os olhos para Creech. Ele tinha uma cara bondosa e marcada, toda coberta de pó - triste
e desanimada- com olhos enormes e sombrios.
- Eu não lhes disse o que tinha acontecido? - guinchou Joel. - Todos mortos à fome.
Lágrimas marejavam os olhos de Brackton.
- Valha-me Deus, lamento muito - exclamou penalizado. Ninguém parecia ter reparado em Slone, excepto Holley, que se
aproximou dele com um olhar de aviso.
- Conta-nos como aconteceu, Creech - disse Brackton.
- Dá-me uma bebida - disse Creech.
- Valha-me Deus, entra - gritou Brackton. - Entrem todos, estamos contentes por te ver em casa.
Entraram todos, e Holley manteve-se junto de Slone.
- Eu ouvi a corrente a descer naquela noite - começou Creech. - Estava sozinho e demorei algum tempo a tirar os cavalos. Se Joel estivesse comigo, talvez... - A
sua voz tremeu e sumiu-se; então resumiu: - Eu tirei os cavalos para o pátio, gritei e disparei.

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Ninguém ouviu, o rio subia velozmente. Então a corrente começou a descer negra, ventosa, horrível. Foi o diabo fazer os cavalos recuar.
"Na manhã seguinte apareceram dois piutes. Tinham perdido os cavalos nas montanhas. Toda a comida naquele sítio desaparecera. Os piutes disseram que para norte também
não havia nada, nem comida, nem água, e então decidi ir para sul, se conseguíssemos subir. Peg partiu aí uma perna e eu... eu tive de a abater. Mas continuámos com
o resto da manada. Viajámos cinco dias para oeste da ravina. Não havia erva e apenas um bocadinho de água com sal. Blue Roan estava coxa.
"Um a um os cavalos foram descendo. E por fim, eu... eu não podia ver Blue Roan morrer à fome, a morrer mesmo debaixo dos meus olhos, e
abati-a também.
Houve uma longa pausa na narrativa de Creech.
- Os piutes terão de ser pagos, se eu algum dia lhes puder pagar. Se não fossem eles, eu estaria perdido. Circundámos e atravessámos as ravinas vermelhas e depois
o areal, e descemos pela falésia. Debaixo da parede havia um grande banco de areia, e aí encontrámos o barco de Bostil.
- Bem, o barco de Bostil... - explodiu Brackton. - Joel ainda não
lhe contou?
- Não, Joel não disse uma palavra acerca do barco - replicou
Creech. - Que tem?
- Foi cortado antes da corrente ter subido.
Brackton esperava que isto fosse espantar Creech. Mas ele não mostrou
sequer surpresa.
- Está cá um vaqueiro de nome Slone, um caçador de cavalos selvagens - continuou Brackton -, e Joel jura que esse Slone pôs o barco à deriva para poder ganhar a
corrida. Joel jura que o apanhou.
Slone saiu do grupo e encarou Creech.
- Isso não é verdade. Eu não cortei as cordas do barco - declarou
firmemente.
- Quem é você? - perguntou Creech.
- O meu nome é Slone. Eu vim até aqui com um cavalo selvagem e ganhei a corrida. Depois culparam-me pelo que aconteceu.
O olhar penetrante de Creech parecia atravessar Slone.
- E Joel acusou-o?
- Assim o dizem. Eu lutei com ele, bati-lhe, porque ele insultou uma
rapariga.
- Vem cá, Joel - chamou Creech, firmemente. E pousou a sua enorme e pesada mão no ombro do rapaz. Joel tremeu ao seu contacto. - Filho, tu mentiste. Porquê?
Joel mostrava um medo visível a seu pai.
- Ele gosta de Lucy, e eu vi-o com ela - gaguejou o rapaz.
- E mentiste para magoar Slone? Joel não responderia a isto, pois teria de admitir que tinha mentido.

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Ele parecia não ter o sentido da culpa. Creech olhou-o agudamente e então puxou-o para trás.
- Homens, o meu filho sujou o nome deste vaqueiro - disse Creech. - Todos vocês viram isso. Slone nunca cortou as cordas do barco. De qualquer maneira esse crime
manteve o barco fora de água por dias quando os meus cavalos poderiam ter sido salvos.
- Creech, havia alguma coisa naquele barco? - começou Brackton com intensa curiosidade. - Alguma coisa nas cordas, ou isso, que pudesse dar a ideia de quem cortou
os cabos?
Creech não respondeu. Uma sombra brilhou escura nos seus olhos.


CAPÍTULO XVI

O RESGATE



A Lua não apareceu naquela noite e eram poucas as estrelas que brilhavam por entre as nuvens. O ar era espesso e opressivo, impregnado do calor que se fizera sentir
durante todo o dia. Algumas réstias de luz davam um brilho claro atrás das montanhas, entregando um aspecto de grandiosidade ao deserto.
Lucy Bostil teve de iludir a tia para poder sair de casa, e a janela que, desde que Bostil saíra, não voltara a ser usada, foi de novo precisa. Ela tinha vestido
o seu fato de montar.
Lucy receava estar um pouco atrasada. Iludir a vigilância de sua tia e mudar de vestido levara-lhe um certo tempo. Ela conhecia o caminho e conseguia deslizar suavemente,
mal tocando nas folhas que calcava.
De súbito imaginou ouvir passos e parou, quieta como uma árvore. Enquanto ali estava a escutar sentiu uma presença, uma estranha e indefinida presença.
Mas entrou no prado e deslizou suavemente até ao fim da elevação. Algumas clareiras atravessavam-na em ângulos rectos, e nesses pontos ela ia mais veloz.
Então chegou a uma clareira ainda maior. Mal a notou e continuou. Então apareceu um barulho leve. uma sombra veloz. Entre dois passos, à medida do bater do seu coração,
uns braços possantes atiraram-na ao chão. Uma mão forte tapou-lhe a boca. Ela estava a ser transportada rapidamente por entre a sombra.
Cordts apanhara-a. Sentiu-se desmaiar. Mas sentiu que o corpo se descontraía. Colocaram-na de novo no chão; a mão libertou-lhe a cara.
- Não grites, rapariga. - Esta ordem, dada numa voz decidida e forte, furou-lhe os ouvidos. Ela apercebeu-se do brilho de uma arma nas suas costas.

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- Eu... eu estarei quieta -- gaguejou.
O homem recuou um passo. Ele era alto, magro. Ela olhou para ele. A fraca luz das raras estrelas, reconheceu o pai de Joel Creech.
- Oh. graças a Deus - murmurou intensamente aliviada. - Eu pensei que você era Cordts.
- Está calada - ordenou em surdina.
- Mas... mas que quer isto dizer? - murmurou ela muito baixo. Creech ajoelhou-se. A sua face magra, iluminada por uns olhos
terríveis, fê-la tremer.
- Bostil arruinou-me e matou os meus cavalos - murmurou, selvagem. - E eu vou levar-te. E pedirei de resgate King e Sarchedon... e todos os cavalos de corrida.
- Oh! - gritou Lucy. - Oh, Creech. Então não me quer mal.
O homem endireitou-se e quedou-se por um momento como se ela lhe tivesse apresentado uma nova maneira de ver a questão.
- Lucy Bostil. eu sou um homem arruinado, selvagem e cheio de ódio. Mas Deus sabe que eu nunca pensei em fazer-te mal. Não, criança, eu não te quero mal. Mas deves
obedecer e ficar quieta, porque há um demónio em mim.
- Para onde me leva? - perguntou ela.
- Lá para baixo, para a ravina, onde ninguém me apanhará - disse ele. - E vou partir o coração de Bostil. como ele fez com o meu. Vou-lhe mandar um recado. E vou-lhe
dizer que se ele não me dá os cavalos eu vendo-te a Cordts.
- Creech. eu receio bem que ele não vá nisso. É melhor entregar-me. Deixe-me voltar. Eu não direi nada. E não o censuro.
- Não vale a pena - replicou ele. - Não fales mais. Sobe e vai à
minha frente.
Ele conduziu-a a um cavalo esguio. Lucy subiu para a sela. De repente, notou que outro homem ali estava, e que segurava dois cavalos. Ele montou e cavalgou na sua
frente. E ela pôde então reconhecer Joel Creech.
- Continua - ordenou Creech, esporeando o seu cavalo.
E Lucy achou-se a cavalgar em fila indiana, com dois homens e um cavalo de carga, pela planície escura. Iam em direcção às montanhas, que brilhavam escuras à distância.
Os cavalos trotavam pela encosta, virando gradualmente, para evitar atravessar a aldeia, até que Lucy ficou de costas para as montanhas.
A sua frente estendia-se o deserto brilhante e sombrio, e não conseguia ver nada através da escuridão. Lucy sabia estar a dirigir-se para norte, ao encontro da grande
ravina, desconhecida dos vaqueiros.
Que iria Slone fazer? Ele viria na sua pista. Lucy tremeu pelos Creech se Slone os apanhasse, e lembrando-se da sua habilidade em seguir trilhos, e do veloz e ágil
Wild Fire: convenceu-se de que Creech não iria mantê-la presa por muito mais tempo.

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Assim, enquanto cavalgava, a mente de Lucy trabalhava. Ela estava habituada a cavalgar e o hábito tinha semelhante poder nela que as horas passaram a voar. Ficou
surpreendida quando a fizeram parar e viu em baixo as sombras escuras das rochas.
- Desmonta - ordenou Creech.
- Onde estamos? - perguntou Lucy.
- Acho que estamos nas montanhas. E vamos dormir um bocado, pois estamos a precisar - estendeu um cobertor, pôs a sela na ponta do cobertor e estendeu por cima outra.
- O que eu quero saber é se te devo amarrar ou não - perguntou Creech. - Se o fizer, vais ficar mal. E isto será a viagem mais dura que já algum dia fizeste.
- Quer saber se eu vou tentar escapar, ou não? - inquiriu Lucy.
- Exactamente.
- Creech. se eu lhe desse a minha palavra de que não vou tentar fugir você acreditaria? - perguntou ela.
Creech foi lento a responder:
- Acho que sim - disse, por fim.
- Está bem, eu dou a minha palavra.
- Aí está uma coisa sensata. Agora deita-te. Lucy fez o que lhe ordenaram e cobriu-se com o cobertor. Com os
olhos fechados pensou que se tratava tudo de um sonho. Então, a sensação da dura sela que lhe servia de almofada debaixo da cabeça, comprovou-lhe que na verdade
estava bem longe da sua confortável cama. Que faria a pobre tia Jane na manhã seguinte quando descobrisse que ela não estava lá? Que faria Holley? E Slone? Lucy
sentiu pena dele. E com a cabeça a andar à roda, aparentemente sem sono, os pensamentos, por fim, tornaram-se sonhos.
Lucy acordou ao amanhecer. Uma das suas mãos estava gelada de frio, pois ficara de fora do cobertor. A cama dura magoara-lhe os músculos. Na manhã cinzenta viu os
Creech à volta de uma fogueira.
Lucy levantou-se. Agradeceu à sua boa estrela por estar de fato de montar e usar as suas botas.
- Vem comer - disse Creech.
Ela comeu, embora a comida grosseira lhe causasse enjoo. De uma vez olhou curiosa para Joel Creech. Ele estava mais esquisito e solene do que nunca.
Os Creech não pararam de fazer as suas tarefas. Lucy foi deixada sozinha. O lugar parecia uma espécie de depressão da qual se estendia o deserto para oeste, e as
montanhas por trás erguiam-se fendidas e amarelas, pejadas de cedros.
- Vai buscar os cavalos se quiseres - disse-lhe Creech. E enquanto Lucy ia buscar os cavalos ao pasto, ouviu-o ralhar com o seu filho. - Volta aqui. Deixa a rapariga
em paz ou eu desfaço-te.
Lucy conduziu os cavalos para o campo onde Creech os começou a selar,

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O outro cavalo, o de carga, Lucy encontrou-o entre os cedros na base das rochas mais baixas. Quando ela o trouxe, Creech falava duro com Joel, que tinha montado.
- Quando voltares, sobe esta ravina. Vai dar ao cimo do planalto. Eu não posso deixar de te ver, a ti e a qualquer pessoa, muito antes de chegares ao topo. E escusas
de vir sem os cavalos de Bostil. Sabes o que tens a dizer se Bostil te ameaçar, ou se recusar a mandar os cavalos, ou mandar os vaqueiros no meu encalço. É tudo.
Agora vai.
Joel Creech dirigiu-se até ao deserto.
- E agora vamos continuar - disse Creech a Lucy.
Quando tudo estava pronto, ordenou a Lucy que o seguisse de perto. Entrou num desfiladeiro estreito na ravina mais baixa repleta de cedros e pasto. Lucy cavalgava
junto aos cedros, e arquitectava a ideia de colher as pequenas bolotas e deixá-las cair nalgumas partes do caminho onde os seus traços não seriam notados. Depressa
encheu os bolsos do seu casaco.
O estreito desfiladeiro abria-se agora numa ravina de paredes curtas, cheia de detritos das ravinas, apodrecidos, e estas, por sua vez, abriam-se numa ravina principal
com enormes despenhadeiros amarelos.
Creech atravessou esta aberta falésia e entrou numa das muitas fendas da parede. Esta estava cheia de rocha estalada e xisto moldado, a pior espécie de caminho para
homens e cavalos. Lucy lembrou-se de deixar cair algumas bolotas de cedro sobre o chão de rocha.
Aquele dia foi o mais fatigante que Lucy passara ao ar livre. Ao pôr do Sol, quando Creech parou num nicho do desfiladeiro entre penhascos sombrios, Lucy saltou
do seu cavalo e deixou-se ficar quieta na erva.
Creech, depois de ter solto os cavalos, trouxe-lhe água fresca para beber da nascente que ela podia ouvir ali perto.
- Que distância percorremos hoje? - murmurou ela.
- Pelas minhas contas, umas sessenta milhas - respondeu ele. - Mas não estamos nem a metade da distância de onde acampámos ontem à
noite.
Começou a fazer as tarefas do acampamento. Lucy abanou a cabeça quando lhe trouxe comida, mas ele insistiu e ela não teve outro remédio senão comer.
No dia seguinte, Creech saiu daquela ravina de paredes baixas, e Lucy viu uma região selvagem e de rochas cortada por gargantas verdes e amarelas com cedros. A longa
e escura linha que avistara no dia anterior estava mais próxima, pairando sobre esta região de ravinas que se entrecruzavam. De meia em meia hora Creech levava-os
para baixo, para de novo subirem. A viagem não foi muito dura e ela acabou o dia em melhores condições que na véspera.
No dia seguinte, Creech continuou com cuidado e precaução. Muitas vezes abandonou o caminho mais directo, deixando Lucy à sua espera, e subiu ao topo das ravinas
ou ao cimo das montanhas,

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e destes pontos estratégicos vigiava toda a região. Quando Creech parou num cume que dava uma ampla visão sobre a região que tinham atravessado, Lucy viu alguns
vultos que se moviam à distância, muitas milhas atrás.
- Acho que já deste conta - disse Creech.
- Está alguém a seguir-nos? - Perguntou Lucy, e não conseguiu evitar que a voz lhe tremesse.
- Bem, eu devia rir-me. Há dois dias, pelo menos. Eles ainda não nos viram. Mas continuam a seguir-nos.
- Eles? Quem? - perguntou ela.
- Eu detesto ter de te dizer, mas acho que devo. É Cordts e dois do seu bando.
- Oh. Não me diga isso - gritou Lucy, subitamente apavorada.
- É Cordts, sem dúvida - replicou Creech. - Eu sabia isso mesmo antes de os ter visto. Há já dois dias que eu vi os seus cavalos a pastarem na ravina. Mas eu pensei
tê-los despistado. Alguém nos viu. Ou viu o nosso trilho. De qualquer maneira ele vem atrás de nós. O que não percebo é como ele descobre o nosso trilho.
- Creech, fui eu que deixei o trilho marcado - confessou Lucy.
- Quê?
Então ela contou-lhe como deixara cair bolotas de cedro e pedaços de folhas nas zonas mais rochosas que tinham atravessado.
- Bem. eu... - Creech estava sem fala. Depois riu, mas asperamente. - Tu és engraçada. E agora se Cordts te apanhar não te podes queixar.
- Oh! - gritou Lucy, olhando para trás com ansiedade. As figuras moviam-se distintamente. - Como é que ele sabe que eu estou aqui?
- Isso eu não sei. Talvez nem saiba. Os seus cavalos estão frescos, e se eu não o conseguir despistar, depressa saberá quem está a seguir.
- Vá lá. Temos de o despistar. Eu não torno a fazer isso. Pelo amor de Deus, Creech, não o deixes apanhar-me.
E de novo Creech deixou o campo aberto e se meteu nas ravinas.
O dia estava a acabar e, para Lucy, a noite parecia um fantasma negro. Um novo amanhecer encontrou-os ainda a andar, não dando tréguas a Lucy nem aos cavalos. Ele
mantinha-se a passo rápido ou a trote e ia alisando o chão para o deixar o menos possível marcado. Multiplicou as pistas. Viajou pela água de algumas nascentes
onde não era possível deixar marcas. Por essa altura os cavalos começaram a fraquejar.
Nessa noite, Lucy sentiu-se perdida num abismo. Sonhou que Cordts a tinha capturado, levando-a para o meio daquelas enormes ravinas, que Slone a seguia em Wild Fire
e que houvera uma luta tremenda. E acordou aterrorizada na escuridão da noite.
No dia seguinte, Creech viajou para oeste através de uma ravina selvagem. E a cada curva parecia impossível ir mais longe naquele estreito e rochoso caminho. No
entanto Creech conseguia avançar.
Então começaram a trepar encostas, bancos e desfiladeiros

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totalmente desconhecidos para Lucy. Os ramos secos dos cedros rasgavam o seu fato de montar e muitas vezes se cravavam na carne. Pelo meio da tarde, Creech atingiu
o último declive, uma encosta amarela de cedros, que conduzia a um planalto coberto de erva e pinheiros. Aí descansaram.
- Podes estar certa que enganámos Cordts - disse Creech,
- Oh, tem a certeza? - perguntou Lucy implorativa.
- Tão certo como estou da morte. E ficaremos com a certeza ao atravessar este braço. Estamos a milhas do outro lado onde eu devia espreitar o regresso de Joel, e
não deixámos nenhuma pista.
Lucy olhou em redor dos pinheiros. Era uma linda floresta com árvores afastadas, mas no entanto os seus ramos tocavam-se. Chegou-lhe ao nariz uma fragrância tão
densa como perfume.
- Não consigo ir mais longe por hoje - disse ela.
- Tens de conseguir - respondeu ele. - Deste lado da ravina não há água. E do outro lado há.
Assim, meteram-se pela floresta. E Lucy descobriu que afinal de contas conseguia continuar. Os cavalos iam a passo e o chão macio não a incomodava.
Passou-se a tarde; o Sol punha-se entre os pinheiros e reflectia uma chama dourada e negra; o entardecer depressa se tornou noite. Lucy adormeceu no seu cavalo.
Por fim, já tarde, quando Creech a tirou do cavalo e a deitou, ela aninhou-se no chão de caruma e não tornou a acordar até à tarde do dia seguinte. Estava incapaz
de caminhar ou de comer. Creech andava de volta dela com um remorso que aparentemente sentia e não conseguia exprimir por palavras.
- Acha que agora estamos a salvo de Cordts? - perguntou ela.
- Acho que sim. Ele não é nenhum especialista em pistas.
- Mas suponha que ele descobre a nossa?
- Bem. suponho que o terei de experimentar como atirador. Lucy olhou para o homem surpreendida.
- Oh. é tão estranho - disse ela. - Você lutaria por mim. No entanto, arrasta-me pelo meio destas rochas horrorosas estes dias todos.
- Lucy. eu não pensei nisso quando te trouxe. Tu eras apenas o meio de atingir os meus fins. Bostil odeia-me. Arruinou-me. Eu tinha de me vingar. E só o conseguiria
através de ti.
- Creech, eu não defendo o pai. Ele não... ele não presta no que diz respeito a cavalos. Eu sei que ele o enganou. Mas por que não foi ao encontro dele como um homem,
em vez de me trazer para esta aventura?
- Bem. acho que também não pensei nisso. Quem me dera tê-lo feito. No dia seguinte, Lucy sentiu-se melhor e ofereceu-se para ajudar
Creech nos trabalhos do acampamento. Ele não a deixou. Não havia mais nada a fazer a não ser esperar e descansar, e a inactividade parecia custar ainda mais a Creech
que a Lucy. De uma vez disse pensativo:
- Estou a ver se me lembro de algo que ouvi no rancho.

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Queria perguntar-te... - De repente virou-se para ela com animação. - Ouvi que tinhas batido King com um cavalo vermelho... um cavalo selvagem.
- É verdade. E o pai quase desmaiou.
- Pelo amor de Deus, conta-me tudo.
Lucy contou-lhe a corrida, e teve de lhe contar tudo acerca de Wild Fire, e de Slone. Ele regozijava-se com a derrota de Bostil. E quando Lucy lhe contou que Slone
se atrevera a desafiar o seu pai para uma corrida e que tinha oferecido o seu cavalo e a sua vida contra a sua mão, então Creech ficou extasiado.
- Esse Slone, deve ter enfurecido Bostil. Diz, Lucy, tu estás apaixonada por ele?
Lucy admitiu que estava.
- E o teu pai está contra ele. Por que não vendeu, o palerma, o garanhão ao teu pai?
- Ele ofereceu-me Wild Fire.
- Eu teria feito o mesmo. Bem, quando regressares a casa, que vai acontecer de tudo isso?
Lucy abanou a cabeça pesarosa.
- Só Deus sabe...
Creech pousou a sua enorme mão na cabeça dela.
- Bostil não vai perder a sua única rapariga, nem o seu cavalo favorito. Lucy, eu nunca tive uma filha. Mas ainda me lembro das cavalgadas que tu fazias no meu joelho
quando eras pequena.
Então afastou-se em direcção à floresta. Lucy observou-o com compaixão, e quando pensou que ele se tornara mau devido ao seu pai, sentiu-se envergonhada. Lucy resolveu
com determinação que o seu pai teria de indemnizar convenientemente todas as perdas de Creech.
Pela tarde do dia seguinte, quando se levantou o vento e o calor, Lucy foi acordada de um sono leve. Creech estava perto dela. Quando desviou o seu olhar da ravina,
estava a sorrir. Era um sorriso ao mesmo tempo triunfante e triste.
- Vem aí Joel com os cavalos. Lucy saltou, tremendo de agitação:
- Oh, onde, onde?
- Mesmo por debaixo daquela parede vermelha. Uma linha de cavalos. Como carneiros mansos. E agora desapareceram de vista.
- Oh, não consigo vê-los - gritou Lucy -, tem a certeza?
- A certeza absoluta - replicou ele. - Joel vem aí. Pareceram séculos a Lucy, estar ali à espera, até ver os cavalos que
vinham em ziguezague nos desfiladeiros lá em baixo. Desapareciam e passava uma eternidade até tornarem a aparecer perto do sopé da parede. Vibrou ao ver Sarchedon
e King. Só os conseguiu ver de relance. Creech mostrou interesse ao princípio, mas depois continuou com as suas tarefas. Quando acampava, era sempre ele a cozinhar
a refeição do meio-dia.

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Lucy viu os cavalos primeiro. Gritou. Creech deu um salto alarmado. Joel Creech montado no Sage King e conduzindo Sarchedon vinha a galope. Seguiam-se os outros
cavalos.
- Qual é a pressa dele? - perguntou Lucy. - Depois de ter subido àquela ravina. Joel não devia puxar pelos cavalos.
- Bem, Lucy. reconheço que não estou a gostar disto. Olha para Joel - murmurou e saiu ao encontro do seu filho.
Lucy correu atrás dele. Só viu Sage King. Ele viu-a, reconheceu-a e relinchou mesmo com Joel a puxar por ele. Pela primeira vez King mostrava prazer em ver Lucy.
Ele tinha sido maltratado. Mas não estava acabado, apenas quente e suado. Ela assegurou-se disso e depois correu para acalmar o relincho de Sarch. Lucy ouviu os
outros cavalos que se aproximavam, reconhecendo Two Faces e o seu relincho agudo. Deliciada, começou a correr ao seu encontro quando o tom de voz de Creech a fez
parar.
- Que tens a dizer? - perguntou Creech.
- Eu tinha razões para fazer correr os cavalos, é isso aí - disse Joel. Tinha a boca a espumar.
- Explica-te.
- Cordts e Hutch.
- O quê? - gritou Creech.
- Cordts e Hutch vieram atrás de mim até àquela ravina. Eles viram-me e vêm atrás de mim.
Creech assobiou.
- Ajuda-me a empacotar as coisas. E tu também, Lucy. Temos de nos raspar daqui.
Os Creech pouco demoraram a arranjar as coisas. Depressa estavam a caminho da floresta, com Creech à frente, Lucy no meio e Joel atrás, montado no King. Os dois
cavalos de carga iam à frente.
De novo o coração de Lucy se arrepiou. Qual seria o fim desta aventura? A maneira como Creech olhava para trás fez aumentar as suas preocupações. Como seria horrível
se Cordts cumprisse as suas ameaças de fugir com ela e com King.
Quando saíram da floresta, até a uma encosta suave de erva, e em seguida a uma ravina aberta, Lucy surpreendeu-se ao reconhecer o sítio. Como tinha sido rápida a
viagem pela floresta.
Creech desmontou.
- Podes saltar, Lucy. Tu, Joel, apressa-te e chega-me esse pacote pequeno. Eu vou levar Lucy e King para aqui. Tu vais por aí com os cavalos e age como se fosses
na nossa pista. Percebeste?
- Quer que Cordts me siga? - perguntou Joel.
- Claro. Ele há-de apanhar-te. Mas não precisas de ter medo, se ele o fizer.
- Eu não vou fazer isso.
- E por que não? - perguntou Creech.

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- Eu vou com vocês.
Foi visível o esforço de Creech para controlar o seu temperamento.
- Eu vou levar Lucy e King de volta a Bostil. Joel repetiu estas palavras digerindo-as lentamente.
- Levar os dois. A rapariga... e desistir do cavalo.
- Sim. os dois. Mudei de ideias, Joel. Agora, tu...
Mas Creech não chegou a acabar o que queria dizer. Joel Creech foi atacado, de súbito, por uma horrível loucura. Os seus estranhos olhos torciam-se. A sua respiração
era ofegante. Ele espumava pela boca. Saltou, aparentemente na direcção de seu pai, mas falhou a direcção. Então assobiou e começou a gesticular de uma maneira estranha,
repetindo frases incoerentes.
- Está calado - ordenou Creech.
- Não, não estou - rosnou Joel, movendo a cabeça desordenadamente. - E você não vai levar essa rapariga para casa. Eu vou levá-la comigo, vou despi-la e vou...
Lucy viu o velho Creech tremer e avançar. Ouviu um barulho. Joel caiu. Mas depressa se levantou procurando a sua espingarda.
Creech saltou para Joel. Houve uma luta renhida e feroz. O cabelo de Creech estava em pé e a sua cara revelava uma fúria doentia, e continuava a praguejar. Lutavam
pela posse da arma. Mas Joel parecia possuir forças sobre-humanas. Lucy viu-o levantar o braço e disparar.
Creech ficou silencioso e libertou Joel. Cambaleou. Os seus braços levantaram-se num gesto horrível e trágico. Caiu.
Joel mantinha-se ao pé dele tremendo, lívido. Fez menção de guardar a arma, mas apenas a deixou cair.
A vista daquela arma caída quebrou a imobilidade de Lucy que, aterrorizada, se mantivera silenciosa. Mediu a distância até Sage King. Joel virava-se. Então Lucy
correu para Sage King, alcançou-o e, saltando, estava quase em cima dele quando o cavalo relinchou e empinou-se, impedindo-a de subir. Então umas mãos de ferro agarraram-na
e atiraram-na como a um saco vazio para cima da erva.
Joel Creech não disse uma palavra. Lucy estava deitada de costas observando-o. Ela sabia estar próxima da arma que jazia no chão. Tinha os olhos fixos em Joel e
ele olhava-a. E ela viu que ele tinha o pé em cima da corda que rodeava o pescoço de Sage King. King nunca gostara de cordas. Estava nervoso. Levantava a cabeça
tentando livrar-se dela. Creech, sem deixar de olhar Lucy, procurou a corda e atou-a. King mantinha-se calmo com o arreio para baixo.
Parecia a Lucy ter alcançado a arma sem afastar os olhos dos de Joel. Reuniu todas as forças, rolou suavemente, e alcançou a arma ao mesmo tempo que Creech, como
uma pantera, lhe saltava em cima. O seu peso esmagou-a. A sua força transformou as forças dela nas de uma criança.

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Atirou a arma fora. Lucy jazia de face para baixo, incapaz de mover o seu corpo com ele em cima dela.
Creech tentou virá-la. Lucy resistiu. E ela foi forte. A sua resistência enfureceu Creech. Voltou-a rudemente. Então, com as suas mãos que mais pareciam garras de
aço, esfarrapou-lhe a blusa.
O contacto das mãos dele na sua carne enfraqueceu momentaneamente Lucy, e Creech apertou-a até ela jazer aparentemente inofensiva perante ele. Despiu-lhe um ombro.
Os seus estranhos olhos amaciaram-se e brilharam com uma luz diferente.
Ágil e manhosa como um gato, ela cravou-lhe os dentes num dos braços. Mordeu com força e com persistência... Creech uivava como um cão. Bateu-lhe. Praguejava e resmungava.
Então ergueu-a e, no agitar do corpo, o braço que a apertava afrouxou a sua força.
Lucy, semierguida, saltou, procurando a arma. Apanhou-a, mas Creech tirou-lha da mão com um pontapé. Então envolveu-lhe as costas nuas com a corda mas ela escapou-se.
Ágil e rápida, ela saltou e correu. Mas em algumas passadas ele tinha-a de novo cativa.
Creech baixou-se, agitando a corda. Ele pretendia fazer mais do que chicoteá-la. Lucy mandou-lhe as mãos ao comprido cabelo. Então, com um rugido, ele içou-a do
chão. Quando afrouxou a pressão havia punhados de cabelos nas mãos de Lucy.
De novo tornou a cair já sem forças para se erguer. Creech tremia e metade do seu discurso era inaudível. Agachou-se com um joelho fazendo pressão na rapariga.
Cortou a corda. Atou o outro pedaço à volta do pulso. Levantando-se, empunhou "as duas cordas. Começou a recuar, desenrolando-a com as mãos. Então com um gesto rápido
apanhou o arreio de Sage King e conduziu o cavalo para perto da rapariga.
Baixou-se, ergueu-a, atirou-a para cima de King e atou-os bem juntos.
Então puxou com força a corda atada ao seu tornozelo e amarrou-o ao outro.
Lucy percebeu que se aproximava o fim. Creech ia realizar a sua
ameaça. Se ao menos Creech deixasse cair o arreio... Se ao menos Sage
King estivesse livre para fugir.
Lucy conseguia virar a cara o suficiente para ver Creech. Como um demónio executava o seu trabalho revelador. De súbito apanhou a arma. - Olha cá - gritou roucamente.
Com os olhos cravados nela, rosnando horrivelmente, caminhou alguns passos até onde a erva era alta e não estava pisada. O vento, vindo da ravina, soprava ainda
com força. Creech virou a arma para baixo e disparou. Sage King estremeceu. Mas ele não tinha medo de tiros. Deixou-se ficar, batendo com os cascos no chão. Então
Lucy pôde ver de novo. Uma fina nuvem de fumo amarelo elevava-se - uma pequena chama, um suave barulho. Então, à medida que o vento soprava, o barulho começou a
aumentar. O fogo, como magia, erguia-se e espalhava-se com o vento na direcção da floresta.

119

Lucy tinha-se esquecido que Creech tencionava metê-la no fogo. O súbito pavor quase que a fez desmaiar. Mas os dedos rudes de Creech acordaram-na. Ela podia vê-lo,
embora com dificuldade. A sua face não parecia humana, disforme, cinzenta. As suas mãos pegaram-lhe nos braços - uma última precaução para verificar se ela estava
bem amarrada. Então, com dedos de vaqueiro experiente, desatou o arreio a Sage King.
Creech recuou e deixou cair uma mão violenta na roupa de Lucy. Ela baixou-se virando o pescoço para o olhar. Mas não conseguia ver claramente. No entanto, percebeu
que ele tencionava despi-la. Ele preparava-se para a rasgar de um puxão. Os seus dentes amarelos sobressaíam na sua boca. Os seus olhos contrastantes brilhavam de
alegria alienada.
Mas não chegou a fazê-lo. Algo chamou a sua atenção. Olhou. Viu qualquer coisa. Os seus lábios soltaram um grito horrível.
Lucy sentiu King tremer da cabeça aos pés. Ela sabia que era de medo. Esperou pelo segundo relinchar, e estava preparada quando ele o soltou. Num segundo ele partiria.
Ela sabia disso. Tremeu. Tentou chamá-lo mas os seus lábios estavam fracos. Creech parecia paralisado.
Então King relinchou e resfolegou. Lucy ouviu uns rápidos e secos batimentos. Era o bater de cascos de cavalo. De súbito o ar encheu-se de um agudo e selvagem relincho.
Penetrou na mente de Lucy. Ela conhecia aquele relincho.
- Wild Fire! - gritou.
King deu um berro convulso e aterrorizado. Ele também conhecia aquele relincho. E desatou a correr. Mesmo através da linha de fogo. Lucy sentiu o calor das chamas.
O fumo cegava-a e enfraquecia-a. Então, um vento seco e fino silvou aos seus ouvidos e agitou-lhe o cabelo. A luz à sua volta desapareceu. King tinha-se metido pelos
pinheiros.
O pesado ruído do vento por cima atingiu Lucy com novo e torturante pavor. Sage King, pela primeira vez na sua vida, estava a correr à rédea solta, e por detrás
dele havia um fogo conduzido pelas asas do vento.


CAPÍTULO XVII

MANDEM O KING


Pela primeira vez na sua longa experiência, Bostil descobriu que perseguir um cavalo o cansava.
Esta viagem a Durango tinha sido um fracasso. Algo estava errado. E durante os cinco dias de viagem de regresso um estranho estado de espírito ia-se apoderando dele.
No último dia, ele e os seus vaqueiros percorreram cerca de cinquenta milhas

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e atingiram o rancho de noite. Ninguém os esperava e só os homens de serviço ao curral sabiam do seu regresso. Bostil, muito aliviado por chegar a casa, foi direito
para a cama e logo adormeceu.
Acordou a uma hora tardia para ele. Quando se vestiu e saiu à cozinha descobriu que a sua irmã soubera do seu regresso e tinha o pequeno-almoço pronto.
- Onde está a rapariga? - perguntou Bostil.
- Ainda não se levantou - respondeu a tia Jane.
Bostil riu-se.
- Bem, vai acordá-la e diz-lhe que eu já voltei.
A tia Jane fez o que lhe foi pedido. Bostil acabou de comer. Mas
Lucy não aparecia.
Bostil começou a sentir algo de estranho e ao chegar à porta do quarto de Lucy bateu. Não obteve resposta. Bostil abriu a porta. Lucy não estava à vista e o seu
quarto não estava arrumado como de costume. Ele viu o seu vestido branco atirado para cima da cama que não fora utilizada. Bostil olhou à sua volta com o coração
contraído. Aquela sensação de que algo estava errado aumentava. Então viu uma cadeira em frente da janela aberta. Bostil olhou para fora e na terra fresca, por baixo
da janela, viu marcas frescas das botas de Lucy. Então berrou pela tia Jane.
Ela veio a correr, e através das perguntas furiosas de Bostil e das suas excitadas respostas, nenhuma conclusão foi tirada. Mas, notando o vestido de Lucy, correu
ao armário. Daí voltou-se pálida para Bostil.
- Ela levou a roupa de montar - gaguejou a tia Jane.
- E mesmo que a tenha levado. Onde está ela? - perguntou Bostil.
- Ela fugiu com Slone.
Bostil saiu do quarto e de casa. Atravessou o prado e foi directamente à cabana de Slone. Estava vazia tal como Bostil esperava. As grades do curral estavam abertas.
Ambos os cavalos de Slone tinham desaparecido. Reparou então no cavalo negro Nagger. que pastava em frente à loja de
Brackton.
Ali estavam alguns vaqueiros. Todos cumprimentaram Bostil, mas este limitou-se a gritar por Brackton. O velhote saiu apressado e alarmado.
- Onde está esse Slone? - perguntou Bostil.
- Slone! - exclamou Brackton. - Eu sei lá. Não está em casa? Bostil não esperou para ouvir mais. Atravessou até aos currais.
Farlane, Van e outros vaqueiros estavam lá, inactivos, como era seu costume. Então Holley apareceu, saindo do celeiro. Bostil puxou da pistola.
- Holley, eu vou-te matar.
Os olhos do velho vaqueiro nem pestanejaram.
- E porquê? - perguntou.
- Eu deixo-te a tomar conta de Lucy e ela desapareceu. Holley mostrou surpresa e desgosto. Os outros vaqueiros repetiram a
última palavra de Bostil. Bostil baixou a arma.

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- Lucy fugiu com Slone - disse Bostil.
Van deixou o grupo de vaqueiros e aproximou-se de Bostil.
- Ainda não há uma hora que eu vi Slone montar sozinho no seu cavalo vermelho.
- O quê? - perguntou Bostil. - De certeza que ela estava à espera noutro sítio. Eles eram suficientemente sensatos para não irem os dois juntos. Selem os cavalos-
rapazes, nós...
- Olhe cá, Bostil, acontece que eu sei que Lucy não viu Slone ontem à noite - interrompeu Holley.
- Hã!? Bem, é melhor explicares.
- Eu confiei em Lucy - disse Holley. - Mas de qualquer maneira, sabendo que ela estava apaixonada, eu quis saber se as raparigas apaixonadas mantêm a sua palavra.
Assim, ao escurecer eu fui até ao prado para ver Slone. Depressa o vi. Meteu-se pela encosta e eu segui-o. Foi até ao banco ao pé do grande algodoeiro. E esperou
muito tempo. Mas Lucy não apareceu. Ele deve ter esperado até à meia-noite. Então foi-se embora. Eu vi-o regressar. Vi-o voltar para a cabana.
- Bem. se ela não foi ao encontro dele, onde está ela? Não está no seu quarto.
- Bostil, talvez ainda não lhe tenham dito que Creech voltou ontem. Ele perdeu todos os cavalos de corrida. Teve de abater Peg e Roan.
- Hã! Ah, sim? Bem, e que disse ele? Holley soltou uma gargalhada significativa.
- Creech disse muita coisa. Mas deixe isso agora. Venha comigo. Holley avançou pelo prado a passos largos. Bostil seguiu-o. Ouviu os
vaqueiros que seguiam atrás.
Holley foi direito à janela do quarto de Lucy, estudando as marcas.
- Foram feitas há mais de doze horas - disse. - Ela trazia as botas sem esporas. Agora vamos ver por onde ela foi.
Holley começou a estudar o caminho através do prado, apontando silenciosamente aqui e além para uma pista.
- Aqui ela parou - disse ele -, talvez para escutar. Parecia que ia atravessar o prado mas não o fez. Aqui avançou com mais velocidade.
Holley atingiu um carreiro interceptado e de súbito parou apontando para uma grande marca no chão.
- Meu Deus, Bostil, olhe para isto.
Bostil viu atrás da grande marca uma fraca impressão feita pelo pequeno pé de Lucy. Era o último sinal do seu avanço e contava o que acontecera.
- Bostil, isto não é a marca de Slone - disse Holley significativamente.
- Claro que não. É o traço de um grande homem - replicou Bostil. - E de qualquer maneira, levantou Lucy e fugiu com ela?
- Tão claro como se o tivesse visto - exclamou Holley.
- Cordts! - gritou Bostil roucamente.
- Talvez, talvez, vá lá.

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Holley ia tão depressa que quase corria e chegou na frente de Bostil. Finalmente várias milhas mais à frente, parou, e de novo se ajoelhou. Bostil e os outros vaqueiros
apressaram-se.
- Afastem-se, não cheguem tão perto - ordenou Holley. Então, como quem procura ouro perdido em areia, revolveu o chão.
Quando se levantou havia uma certeza estampada no seu rosto.
- Quatro cavalos e dois homens, ontem à noite - disse Holley rapidamente. - Aqui puseram Lucy de pé. Aqui ela montou no cavalo. E aqui estão as marcas de um terceiro
homem feitas hoje de manhã.
Bostil levantou-se, encarou Holley como se estivesse prestes a ter um
colapso.
- Parece-me que este último é Slone.
- Sim, eu reconheci-o.
- E as outras marcas, quem as fez?
- Creech e o filho. Bostil sentiu-se queimar por uma chama angustiante.
passou, deitou-se no celeiro, à sombra do feno, prostrado, Quando Estava sem forças. O seu espírito encontrava-se destroçado.
Os vaqueiros entraram, levantaram-no e trouxeram-no para fora. Ele sacudiu-os, a sua respiração era lenta. Sentia o ar fresco acalmando-lhe o cérebro quente e cansado.
Não o surpreendeu ver Joel Creech ali mesmo, atrás de Holley.
- Bostil - começou Holley -, tem de mandar King, Sarch, Ben, Two Faces e Plume como resgate de Lucy. Se não o fizer... então Creech
vendê-la-á a Cordts.
- Mandem King e tudo o que ele quiser - disse Bostil, derrotado. - E mandem dizer a Creech para voltar. Digam-lhe que chegou a minha vez de pagar.


CAPÍTULO XVIII

A PERSEGUIÇÃO


No dia em que Creech desmascarou o seu filho, Slone deixou a loja de Brackton com profundo alívio e subiu até à sua cabana. Antes do entardecer viu os Creech saírem
para a planície, deixando o vale.
Tomou a sua refeição da noite, tratou dos cavalos, e à medida que a vnoite caía, deslizou até ao prado para o seu encontro com Lucy. Ao alcançar o grande algodoeiro,
tentou acomodar-se no banco para esperar.
Lucy não apareceu. A espera tornou-se dura. Ele queria ir até à casa

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para a interceptar pelo caminho. No entanto, manteve-se ali, observando, escutando, com o coração cheio de ansiedade.
Esperou muito tempo, mesmo depois de estar convencido de que ela não apareceria. No regresso pelo prado ouviu passos. Continuou sem dar sinal e no escuro voltou-se.
Viu um homem fracamente delineado. Um dos vaqueiros tinha estado a espiá-lo, tinha-o seguido. Slone sempre estivera à espera disto. E Lucy também. E agora acontecera.
Mas Lucy tinha descoberto ou suspeitado do espião e tinha-o despistado. Slone voltou à sua cabana.
No entanto, antes de ir dormir, ouviu o barulho de cavalos no prado. Ele podia afirmar que eram cavalos fatigados. "Vaqueiros que regressavam", pensou, e instantaneamente
se convenceu, pois era frequente estes regressarem de noite. Então ocorreu-lhe que poderia ser Bostil que regressava. Mas também poderiam ser os Creech. Decidido
a seguir pela manhã o trilho dos Creech, para ver onde tinham ido, adormeceu.
Pela manhã, depois de fazer o seu trabalho, preparou-se para seguir a sua pista. Não foi difícil segui-la no prado, pois mais nenhum cavalo havia seguido aquela
direcção, desde que os Creech ali haviam passado.
Milha e meia mais à frente a estrada virava para Durango. Mas os Creech não continuaram. Entraram pelo prado. Instantaneamente, a curiosidade aguçou-se.
Seguiu a pista até um amontoado de rochas onde os Creech tinham acendido uma fogueira e cozinhado uma refeição. Isto era estranho, a uma milha da aldeia, onde Brackton
e outros os teriam alojado. O mais estranho era que o trilho começava a sul dali e seguia até à aldeia.
O coração de Slone começou a pulsar. Mas ficou a pensar apenas nestas pistas e não no seu significado. Seguiu-as até a um banco da encosta, a alguns metros da propriedade
de Bostil, e aí uma vincada marca indicava onde tinham parado a esperar.
Então Slone não conseguiu evitar as conjecturas e o medo. Procurou e procurou. Ajoelhou-se. Percorreu toda a área que rodeava esta marca. De súbito, estremeceu.
Tinha encontrado marcas das botas de Lucy no terreno macio.
Correu à sua cabana, fez um embrulho com carne e biscoitos, encheu um frasco de água e. pegando na sua espingarda, correu para o curral. Primeiro levou Nagger para
o pasto de Brackton e deixou-o ali. Então, regressando, atou o ligeiro garanhão, selou-o, montou e saiu com a absoluta certeza de que a salvação de Lucy dependia
de Wild Fire.
Quatro horas mais tarde, Slone parou no cimo de uma encosta, coberta de cedros, e observou uma vasta e cinzenta ravina que se estendia até a um planalto fendido.
Slone já compreendia o significado do desaparecimento dos Creech. Eles usariam Lucy para resgatar os cavalos de Bostil. e doutra maneira não a libertariam.
Não foi preciso muito tempo para que os olhos do caçador selvagem

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vislumbrassem uma figura. Slone viu-a tomar forma, e escondendo-se, manteve-se no seu posto até ter a certeza de que o cavaleiro era Joel Creech. Slone conduziu
o seu próprio cavalo até a um tufo de erva e atou-o a um arbusto. Então, voltou-se para observar.
Slone tremia quando o jovem Creech passou e desapareceu pelo desfiladeiro, tremia com toda a força da sua paixão, como nunca tremera na sua vida. Esperou, recuperando
o controlo lentamente e por fim voltou a buscar Wild Fire.
Então cavalgou decididamente pelo trilho. Ele calculava que o velho Creech levaria Lucy para algum retiro selvagem da ravina e aí esperaria por Joel e pelos cavalos.
Creech ia em frente, inconsciente de ter um perseguidor tão de perto na sua pista.
O Sol tornara-se vermelho a oeste quando Slone atingiu a parede de rochas e a ravina onde as marcas de Creech e Lucy serviam de sinal. Slone nem sequer desmontou.
Cavalgando directamente para a ravina, chegou por fim a uma falésia e depois a outra ainda maior, onde descobriu que Lucy se lembrara de deixar marcas. Seguiu por
uma fenda na alta parede, e através dela chegou a outra ravina. O Sol punha-se. Aí havia erva fresca e água para o seu cavalo. Ele não sentia fome, mas comeu; não
sentia sono, mas dormiu. E a luz do dia já o veio encontrar na sua perseguição com Wild Fire. Na zona rochosa, Slone encontrou as bolotas de cedro que Lucy tinha
deixado cair. Gostou de as ver, mas não precisava delas.
O trilho tornava-se mais duro, íngreme e difícil, mas o garanhão mantinha o seu passo e velocidade. Em muitos cumes de planaltos Slone olhava à sua volta na esperança
de avistar os cavalos de Creech. E então, de repente, no areal descoberto, descobriu abruptamente as marcas de três cavalos, um deles ferrado.
Slone desceu do cavalo e caminhou com a mente baralhada. Quando chegou ao cimo de uma ravina mais larga, onde a rocha não tinha vestígio de areia, não encontrou
mais sementes de cedro. Tinham sido apanhadas. No outro extremo desta superfície rochosa descobriu pequenos pedaços de cedro e de sementes amontoados, como se tivessem
sido atirados por alguém que lhes descobriu o significado. - Cordts - murmurou Slone.
Estas ravinas eram o esconderijo do ladrão de cavalos. Ele e dois dos seus homens seguiam Creech; e talvez tivessem adivinhado, como Slone, o que significava. Foi
então que deixou Wild Fire conduzi-lo. O entardecer e a noite vieram com Slone sempre a caminho. Enquanto não houvesse ravinas interceptadas, ou encostas por onde
Creech se pudesse ter desviado, Slone continuava. E já era tarde quando teve de parar.
Cedo, no dia seguinte, o trilho conduziu-o aos desfiladeiros vermelhos do planalto de cedros. Slone viu à distância um planalto brilhando, negro. Todas estas ravinas
e desfiladeiros conduziam àquele grande planalto.

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Nesse dia perdeu duas das marcas dos cavalos. Ele não notou a diferença por muito tempo e até que houve uma quebra no caminho que Creech tinha estado a seguir. Então
era demasiado tarde para voltar atrás e investigar, mesmo que isso fosse aconselhável. Possivelmente o grupo de Cordts tinha-se dividido, um para seguir Creech,
os outros para o ultrapassarem. Sem dúvida, Cordts conhecia estas ravinas e sabia para onde Creech se dirigia, e como interceptá-lo.
O trilho descia de novo até a um estreito com paredes baixas. Slone pôs toda a sua perspicácia no que lhe era dado ver.
O relincho de Wild Fire, acompanhado do agitar da sua cabeça, precedeu um tiro de espingarda. O garanhão elevou-se e correu uma milha. Então Slone pôde olhar à sua
volta.
Ao longo do braço da ravina, cerca de quinhentos metros por cima de si, viu um cavalo baio e um cavaleiro com uma espingarda. Não viu nenhuma vantagem em parar para
atacar o seu perseguidor, e esporeou Wild Fire ao mesmo tempo que um som seco soou por cima da sua cabeça. A bala cravou-se na terra a poucos metros. E então, em
mau terreno, com o garanhão quase indomável, Slone correu, fugindo dos tiros. Por sorte, algumas rochas em cima deixaram o atirador sem visão e Slone não o tornou
a ver.
Foi um grande alívio para ele descobrir que a pista de Creech virava para a esquerda, e aí, com o Sol quase posto, Slone começou a observar as florestas de cedros
e os pedaços de rochas. Mas não o tinham emboscado. A escuridão veio e, sentindo-se estafado, estava quase a parar para passar a noite, quando vislumbrou um acampamento.
Slone desmontou e. conduzindo Wild Fire, avançou cuidadosamente de espingarda em punho.
A ravina terminava num ponto onde duas brechas se juntavam e o resto do espaço estava coberto de cedros e pinheiros. Slone avançou cuidadosamente. Estava admirado
por ver várias figuras que se moviam em frente da brilhante fogueira, e parou abruptamente. Pensou uns momentos. Achou melhor ir dar uma vista de olhos a esses sujeitos.
Assim, atou Wild Fire e levando-o para a parte mais escura da ravina avançou silenciosamente.
Depressa descobriu as sombras dos cavalos que pastavam em campo aberto.
Avançou devagar, cuidadosa e silenciosamente, e por fim deslizou por entre estreitas passagens entre os espessos arbustos. Outro aglomerado de cedros apareceu, e
viu o clarão da fogueira por entre a folhagem verde.
Ao avançar do seu esconderijo, a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a ligeira figura de uma rapariga. Atónito de novo se baixou, crispando as mãos na espingarda.
Seria Lucy na realidade? Ele ouvira falar de uma rapariga que costumava acampar com estes homens, em especial com Cordts.

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Slone teve de voltar a espreitar. A rapariga mudara de posição. Mas a luz brilhava na direcção dos homens. Creech não era nenhum deles, nem Cordts, nem ninguém que
ele conhecesse. De novo se baixou e esperou. Apanhou as palavras "Durango" e "cavalos" e "pelo suficiente", cujo significado era muito vago. Então a rapariga riu-se.
E Slone ficou radiante. Sem dúvida alguma que aquele riso não poderia pertencer a Lucy. Slone recuou como tinha avançado, atingindo a sombra da parede, e deslizou
até se sentir suficientemente seguro para caminhar rapidamente. Pela primeira vez Wild Fire deixou-se conduzir tão bem como se se tratasse do velho e fiel Nagger.
Slone fez o possível por se manter na sombra da parede. Wild Fire sentiu os cavalos, parou, atirou a cabeça, mas foi um dos outros que deu o alarme.
Slone, segurando Wild Fire, não teve tempo para o esporear, mas saltou para a sela e deixou o cavalo seguir.
Ouviu relinchos de cavalos e tiros. Slone não podia ver o chão e deixou que Wild Fire o conduzisse. A sorte favoreceu-o e presentemente Slone estava em terreno seguro.
Slone cavalgou durante uma hora e então decidiu arriscar uma paragem para passar a noite. Antes do amanhecer, já estava a pé, aquecendo o corpo enregelado com movimentos,
e forçando-se a comer.
A sombra da parede oriental mudou de cinzenta para cor-de-rosa. Slone encontrou o trilho feito pelos cavalos de Creech e pelo cavalo do homem de Cordts. Este último
não podia estar muito longe. Em menos de uma hora Slone chegou a um aglomerado de cedros onde este homem acampara. Levava uma hora de avanço.
Esta ravina era aberta com o chão estreito e nivelado dividido por uma profunda nascente. Slone meteu Wild Fire a galope. Não passou muito tempo até que Slone viu
um cavaleiro um quarto de milha à frente e foi descoberto quase ao mesmo tempo.
O homem virou para uma ravina lateral. Slone manteve-se no seu encalço. Então Slone foi obrigado a subir. Wild Fire era tão superior ao outro cavalo e Slone tão
feliz a escolher o caminho mais curto que em breve estaria por cima dele se não fosse um pedaço de rocha ter deslizado e ter-se atravessado no seu caminho. Estava
intransitável. Depois de um rápido olhar, Slone abandonou a perseguição directa e, virando, chegou a um ponto onde o ladrão de cavalos teria de passar por uma fenda
na parede e aí Slone poderia apanhá-lo sem usar a espingarda.
E o homem, pretendendo sair da ravina, cavalgou para a armadilha, aproximando-se cem metros de Slone que de súbito se mostrou em pé, de espingarda em punho.
- Aí, quieto - ordenou ameaçadoramente.
- Aí, quieto você! - berrou o outro, parando o cavalo. Slone levantou a espingarda:
- Tenho-a bem apontada - gritou.

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- Acredito que sim.
- Está bem. Agora fala e depressa. Pertences ao bando de Cordts?
- Claro.
- Por que estás sozinho?
- Dividimo-nos aqui.
- De quem andam atrás?
- Do velho Creech e da rapariga que ele raptou.
- Por que se dividiu Cordts no trilho?
- Ele e Hutch foram buscar mais homens e emboscar Joel Creech quando ele regressar com os cavalos de Bostil.
Slone estava espantado com os cálculos dos ladrões, no entanto e pensando melhor, a situação, uma vez que os Creech tinham sido reconhecidos, era suficientemente
simples.
- Qual é o teu jogo? - perguntou.
- Eu seguia Creech só para descobrir onde ele escondia a rapariga.
- Quais são os planos de Cordts, depois de apanhar Joel Creech?
- É apanhar a rapariga.
- Tens alguma arma?
- Claro.
- Vai por aquele lado. Se te armares em esperto, mato-te.
O homem estava espantado. Slone viu a cor voltar à sua pálida face. Então, virou o cavalo e cavalgou para fora da vista. Slone ouviu as pedras que rolavam na íngreme
descida e, quando teve a certeza de que o ladrão de cavalos levava um bom avanço, voltou para montar Wild Fire e continuar a perseguição.
Quando aquele dia terminou, Slone sentiu-se perdido na ravina. O facto quase o desmoralizou. Passou uma noite de insónia torturante.
Todo o dia seguinte, como um selvagem, cavalgou, subiu e desceu, pensando só no seu propósito, perseguido pelo medo e pelo suspense. Nessa noite, atou Wild Fire
perto da água e da erva e caiu num sono exausto.
A manhã chegou. Cavalgou até a uma ravina com paredes íngremes e quebradas, tal como todas as ravinas sobranceiras ao grande planalto. O planalto formava um todo.
O mundo parecia um labirinto de ravinas.
Então olhou fixamente para as marcas dos cavalos de Creech. Já tinham alguns dias, mas ele era o único que os seguia.

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CAPÍTULO XIX

ATRAVÉS DAS CHAMAS


Aquele trilho levava pela estreita ravina até ao extremo na base do planalto. Por fim, Slone conduziu Wild Fire pelo braço e parou para
respirar fundo.
Wild Fire cheirou o vento e relinchou. Slone saltou para a sela. Cedros entrelaçados quase obstruíam a vista a Slone. O nariz e as orelhas de Wild Fire apontavam
naquela direcção. Slone trotou até à orla do aglomerado para poder ver. Antes de o alcançar viu algo azul, movendo-se e elevando-se,
- Fumo - murmurou Slone.
Wild Fire era difícil de segurar. Ao chegar à orla dos cedros, Slone viu uma linha de chamas ardentes, uma linha de fumo, a erva a arder, cavalos, um homem.
Wild Fire soltou o seu relincho de ódio e ameaça, o seu desafio a outro garanhão. O homem virou-se para olhar.
Slone viu Joel Creech e Sage King e Lucy, seminua, atada às suas costas. Alegria, agonia, terror foram-no avassalando, paralisando-o. Mas Wild Fire começara a correr.
Sage King tremia de medo. começou a saltar, e com um magnífico pulo meteu-se pela linha de fogo,
Alguns relinchos de Wild Fire apressaram o sangue de Slone. Então Creech moveu-se, acordando de uma grande surpresa, e pegando na arma, disparou. Slone ficou sem
fôlego e viu tudo vermelho.
Guiou o garanhão. Em poucos e tremendos saltos, Wild Fire abatera Creech. e Slone teve a rápida visão de uma cara horrorosa. O impacte foi terrível. Creech fora
atirado ao ar, para cair numa rocha, esmagando-se
como um melão.
O cavalo saltou sobre o corpo e meteu-se pela linha de fogo. Slone viu King meter-se pela floresta. Viu o corpo branco de Lucy mover-se com os movimentos do cavalo.
Um único olhar mostrou-lhe que o cavalo cinzento corria sem freio.
Wild Fire atingiu os pinheiros. Aí, nas clareiras, entre as negras árvores, corria o ágil e cinzento cavalo. Wild Fire viu-o e relinchou. King tinha cem metros de
avanço.
Houve um barulho pesado, quase ensurdecedor. Wild Fire saltou atemorizado. Slone voltou-se. O fogo tinha chegado a um pinheiro que explodiu como se o tronco tivesse
pólvora.
Slone apercebeu-se de que nenhum cavalo poderia ultrapassar o fogo guiado pelo vento numa floresta seca. Ficou velho só com este pensamento.
o seco e aromático ar tornava a respiração difícil. O cavalo cinzento, carregando aquela figura meio nua, branca na sombra da floresta, afrouxou a sua maravilhosa
corrida, o movimento de Wild Fire, tão macio, tão ágil, e a espuma e o suor que lhe cobria a cabeça inclinada em frente, tudo isto provava que não se tratava de
um sonho.
O cavalo vermelho não tinha ganho nenhum terreno ao cinzento. Slone, perito a calcular distâncias, viu isso, e pela primeira vez duvidou do poder de Wild Fire em
bater King. Não com tanto avanço. Estava desesperado, tão desesperado...
Voltou-se. Não viu nem fumo nem fogo, só os negros troncos, e a folhagem verde agitando-se no céu azul. Isso fez-lhe avivar uma esperança. Se conseguisse avançar
umas milhas, antes do fogo atingir a crista dos pinheiros, seria possível sair da floresta. Então nasceu-lhe uma esperança ainda mais forte. Parecia que, passo a
passo, Wild Fire ia ganhando terreno ao King. Slone estudou o solo que se estendia à sua frente. Perdeu toda a esperança - tornou a ganhá-la e esporeou o cavalo.
Slone viu que King não levava sela. Assim, só com Lucy, ele ia leve. Só com aquele peso ele poderia correr o dia todo. Wild Fire transportava uma sela pesada, um
pacote, um saco de água e uma espingarda. Slone desatou o pacote e deixou-o cair.
De súbito, as orelhas de Slone sentiram um terrível barulho que se aproximava. Por um instante, o som desconhecido atordoou-o, roubando-lhe as forças. Ele tinha
de correr contra o fogo. Havia milhas de floresta seca, como pólvora.
Incitou o cavalo. Olhou para trás.
Através das clareiras da floresta viu um estranho, veloz movimento vivo. subindo e descendo, nunca igual. Lufadas quentes fustigavam-lhe a cara. Os seus olhos estavam
turvos. Os seus ouvidos doíam-lhe e começavam a ensurdecer. O tumulto tornou-se tão grande que acabou por deixar de ouvir.
E virou a cara em frente. O garanhão cavalgava numa corrida louca, o topo dos pinheiros curvavam-se com o vento, e o fogo selvagem, aquela coisa tremenda que dava
o nome ao seu cavalo, avançava pela floresta.
A frente de Slone, nas clareiras, por baixo das árvores que se agitavam sobre King. a atmosfera flutuante parecia um véu transparente. Transportava faúlhas de pinheiros.
Slone encorajou o cavalo, batendo-lhe nos flancos. Wild Fire respondeu com um berro e aumentou a velocidade.
Slone lutou com o desejo de olhar para trás, mas não conseguiu resistir. Um vento quente, como o sopro de um fomo, soprava ligeiro, atingindo-lhe a face com faúlhas.
O fogo começava no topo das árvores, enquanto em baixo tudo estava limpo. Uma chama flamejante envolveu a copa dos pinheiros. Era branca, incrivelmente ligeira e
com milhares de línguas ardentes.

130

Wild Fire corria contra o fogo e contra o vento, mas não corria agora para matar King; corria aterrorizado. Durante milhas manteve aquele largo, veloz, maravilhoso
passo sem quebras.
Slone desatou o laço e recolheu o nó.
Cada vez mais perto avançava Wild Fire. Ele parecia correr cada vez com mais velocidade à medida que o vento em chamas lhe ganhava terreno. O ar era demasiado espesso
para se poder respirar. Tinha um peso insuportável. Puxava cavalos e cavaleiros na sua corrida - como faúlhas na crista de um ciclone.
Wild Fire aproximava-se de King. O grande cavalo cinzento tinha diminuído de velocidade e começava a fraquejar. Wild Fire, de súbito, relinchou estridentemente.
Slone olhou. À frente havia luz na floresta. Slone viu um espaço aberto de erva - o fim da floresta. Wild Fire, como um demónio, corria na sua direcção, com as suas
capacidades a fraquejarem, começando a falhar a uns passos de King.
Então, com o espaço aberto mesmo em frente, Slone sentiu uma onda de vento quente avassalá-lo. Viu as línguas de fogo crepitantes por cima de si nos pinheiros. A
tempestade estava a apanhá-lo. Avançava. Ele cavalgava debaixo de chamas. Pinhas em brasa caíam à sua volta. Teve a terrível sensação de ir sufocar, do ar se ter
transformado em fogo.
Então, Wild Fire, com o nariz no flanco de Sage King, saiu do pinheiral até ao descampado. Slone viu um espaço de erva que se inclinava até a uma brecha escura no
solo, com despenhadeiros erguendo-se à sua volta, e à sua esquerda um enorme espaço aberto.
Slone sentiu aquele ar límpido com delírio. Os seus sentidos recuperavam. Ali King corria cegamente para a morte. Wild Fire estava cada vez mais fraco. Só o medo
o fazia continuar. Estava quase esgotado.
Slone laçou Sage King, e, segurando-o com força, esperou pelo fim. Continuaram a corrida, cada vez mais fracos. Slone pensou que teria de abater King. pois estavam
cada vez mais próximos do despenhadeiro. Mas Sage King caiu de joelhos.
Slone saltou logo que King caiu. Em segundos, tinha libertado Lucy. Ela estava encharcada de espuma e suor do cavalo. Deslizou para os braços de Slone e ele chamou-a.
Pedaços de corda pendiam-lhe dos seus punhos e Slone viu marcas escuras de sangue. Agarrou-se a ele de mãos a tremer. Ele ouviu então a sua voz fraca:
- Veste-me o teu casaco.
Slone corou violentamente. Envergonhado, pois tinha-se esquecido de que ela estava meio despida, tirou o seu casaco e envolveu-a nele.
- Lin, Lin - gritou ela.
- Lucy... Oh, tu estás bem? - replicou ele, com ansiedade.
- Não estou ferida. Estou bem.
- Esse crápula do Joel. Ele...

131

- Ele matou o pai... um... um minuto antes de chegares. Eu lutei com ele. Ah, mas acho que estou bem. Lin, tu...
- Wild Fire esmagou-o...
- Deixa-me. Deixa-me vestir o casaco - pediu ela.
Ao virar-se, sentiu um vento ligeiro, e o estranho impacto de uma força invisível que o atingia, e então sentiu a carne a abrir. Depois disso ouviu o barulho de
uma arma.
Slone caiu. Tinha sido atingido. A seguir à dor no ombro, sentiu um negro receio pela sua vida.
Lucy olhava-o incapaz de perceber, empalidecendo lentamente. Slone viu-a, viu a nuvem de fumo por cima dela, viu na ravina atrás dois homens, um deles com uma arma
meio erguida. A vista de Cordts electrificou-o.
- Lucy, deita-te no chão. Rápido.
- Que aconteceu? Tu... tu...
- Eu fui atingido. Deita-te, estou-te a dizer. Vai por detrás do cavalo e traz a minha espingarda.
Foi então que Lucy viu Cordts atrás da rocha. Ele não distava cinquenta metros e estava plenamente visível - alto, magro e sardónico.
- Cordts.
- Deita-te, Lucy - gritou Slone. - Puxa a minha espingarda. Eu só estou arranhado, não estou ferido. Depressa. Ele vai...
Outra pesada detonação interrompeu Slone. A bala falhou mas Slone deu um berro convulso, como se tivesse sido atingido.
- Puxa a espingarda depressa - ordenou.
Lucy correu para Wild Fire. que estava tombado, e tirou a espingarda.
Cordts começara a trepar por uma rocha, evidentemente cortando caminho para chegar junto deles. Hutchinson viu a espingarda e gritou a Cordts. O ladrão de cavalos
parou, com a face escura na frente de Lucy.
Quando Lucy se ergueu, o casaco caiu-lhe dos ombros nus. Levantou a espingarda. Estava toda a tremer.
Hutchinson estava em cima. e Cordts, subindo, gritou por ajuda. Hutchinson baixou-se... pegou na mão que Cordts lhe estendia e puxou-o.
Slone tentou dizer a Lucy para atirar baixo. Ele viu-a pálida, de ombros descobertos, com a cara gelada encostada à espingarda, com os finos braços tremendo e tornando-se
tensos, com o louro cabelo ao vento.
Então atirou.
Cordts caiu no rochedo. Tinha sido atingido. Ele não podia libertar-se de Hutchinson. Estava agarrado à morte. O pobre Hutchinson tropeçou e ao mover-se Cordts
ficou dependurado, com os pés a escorregarem na rocha. Ficou suspenso, apenas seguro pelo seu camarada.
O grito de Hutchinson foi horrível e desesperado. Fez um último esforço e perdeu o equilíbrio. A cara morena e a mão de Cordts balouçavam. Ambos perderam a firmeza
e mergulharam.
As duas figuras caíram - Cordts caindo direito, Hutchinson com a cabeça erguida e os braços agitados - desapareceram nas profundezas. Nenhum som se ouviu.

132


CAPÍTULO XX

AQUI ESTÁ O KING


A escuridão turvou a vista de Slone. tornou a recuperar e de novo conseguiu ver. Lucy estava curvada sobre ele. atando um lenço à volta do seu ombro e debaixo do
braço. Acabando, recuou.
Slone sentou-se. O fumo ia desaparecendo. Pequenos tufos de erva ardiam ao longo da ravina. Apontou para o precipício.
- Eles foram-se - gritou Lucy. Tremia violentamente.
- Wild Fire... e o King... - disse com voz rouca Slone.
- Ambos estão onde caíram. Oh. tenho medo de olhar... E, Lin, eu vi Sarch, Two Faces, Ben e Plume irem por ali.
Ela estava de costas para o trilho do precipício, e apontou sem se voltar. Slone ergueu-se, um pouco vacilante e consciente de uma dor aguda.
- Sarch irá directamente para casa e os outros segui-lo-ão - disse Lucy. - Eles fugiram daqui, onde Joel os deixou. O fogo espantou-os da floresta. Sarch irá para
casa, e isso trará os vaqueiros.
- Não precisaremos deles, se ao menos Wild Fire e o King... Slone parou e, suspendendo a respiração, voltou-se para os cavalos.
Sage King estava estafado, mas sobreviveria para correr de novo. Lucy estava ajoelhada junto a Wild Fire, chorando e chamando:
- Wild Fire! Wild Fire!
Tudo em Wild Fire era branco, excepto onde ele era vermelho, e já não possuía a sua cor brilhante e luzidia. Uma terrível convulsão muscular foi-se tornando mais
fraca. Ainda que cego, moribundo, Wild Fire ouviu a voz de Lucy.
- Oh, Lin, oh - murmurou Lucy.
Enquanto eles ajoelhavam, a violenta convulsão tornou-se um lento gemido.
- Ele bateu o King. transportando peso e com um grande avanço - murmurou Slone, e pôs a sua mão trémula no pescoço molhado do cavalo.
- Wild Fire! Wild Fire!
De novo Lucy chamou o seu cavalo, com um gemido baixo e doloroso. Mas Wild Fire já não a ouvia.

133

o sol da manhã brilhava sobre a planície que se estendia no vale como um mar cinzento.
Bostil sentou-se no seu pouso, um homem vencido. Encarou o horizonte azul a norte, onde dias antes tudo o que ele amava tinha desaparecido. Todos os dias desde que
o Sol se levantava, até que se punha, ele estava ali, esperando, observando. Os seus vaqueiros agrupavam-se em seu redor, silenciosos, atingidos pela sua agonia,
esperando ordens que nunca vinham.
Por detrás de uma encosta levantou-se uma fina nuvem de pó. Bostil viu-a e deu o alarme. No começo da planície apareceu uma figura negra -- a cabeça de um cavalo.
Então seguiu-se-lhe um corpo negro.
- Sarch - exclamou Bostil.
Com as esporas a tinir, os vaqueiros correram ao seu encontro.
- Mais cavalos estão a voltar - disse Holley.
- É Plume - exclamou Farlane.
- E Two Faces - ajuntou Van.
- Dusty Ben - disse outro.
- Sem cavaleiros - rematou Bostil.
Sarchedon e os seus acompanhantes passaram de trote a galope - e depressa batiam os seus pesados cascos no pátio de pedra. Como um enxame de abelhas, os vaqueiros
rodearam os cavalos, apanharam-nos e conduziram-nos até Bostil. No pescoço de Sarchedon apareceu uma risca de sangue seco.
- Bem, é a marca de uma bala, claro como a água - disse Holley.
- Quem a atirou? - perguntou Bostil. Holley abanou a sua cabeça cinzenta.
- Ele cheira a fumo - acrescentou Farlane, que estava ajoelhado junto às pernas do cavalo negro. - Esteve a correr junto ao fogo. Vejam isto. O topete todo chamuscado.
- Acho que deve ter estado no Inferno - murmurou Holley, sombriamente.
Alguns vaqueiros conduziram os cavalos para os currais. Bostil encarou de novo o norte. A sua respiração era pesada, a sua face estava pálida e vincada; as costas
curvadas.
Os vaqueiros iam e vinham, mas Bostil continuava a sua vigília. As horas passavam. Veio a tarde e o tempo foi passando. O Sol perdeu o seu brilho e tornou-se vermelho.
De novo, nuvens de pó, agora como fumo vermelho, levantaram-se na encosta. Um cavalo trazendo uma figura espessa e escura apareceu na planície.
Bostil levantou-se.
- Aquilo é um cavalo cinzento, ou estarei cego?- perguntou inseguro. Holley sombreou os olhos com as mãos.
- É cinzento, Bostil... cinzento como a estepe... e valha-me Deus se não é o King.
Bostil abanou a cabeça, fechou os olhos como se lhe pesassem as pálpebras, e abriu-os de novo.
- Quem vem nele?
- Slone, nunca vi como ele a montar um cavalo - respondeu Holley.
- E o que é que ele traz? - perguntou Bostil ansioso.
- É Lucy. Já a tinha visto há muito tempo.
Uma estranha luz de alegria que surgira desapareceu da face de Bostil. A mudança silenciou os vaqueiros. Observavam King que trotava na planície. A sua cabeça estava
baixa. Parecia mais cinzento do que nunca e brilhava. Continuava e apressou-se ao avistar os currais. Holley pousou a sua mão levemente em Bostil.
- Bostil, a rapariga está viva, está a rir-se - afirmou ele.
Os vaqueiros esperaram por Bostil. Slone cavalgou até ao pátio.
Estava pálido e cansado, agitando-se na sela. Um lenço ensanguentado rodeava-lhe o ombro. Mantinha Lucy nos seus braços. Ela usava o seu casaco. Um sorriso iluminava-lhe
a cara pálida. Bostil, respirando com dificuldade, aproximou-se.
- Lucy. não estás ferida? - perguntou implorante.
- Eu estou bem, pai - disse ela e caiu-lhe nos braços.
Ele beijou-lhe a face lívida e pegou-lhe como a uma criança e, carregando-a até à porta de casa, gritou pela tia Jane.
Quando reapareceu, os vaqueiros rodeavam Slone. Mas Bostil só tinha olhos para King. O cavalo estava cheio de terra, cansado e fraco, mas no entanto mantinha-se
maravilhoso.
Lentamente, o olhar de Bostil desviou-se de King e voltou-se para a planície como se esperasse ver outro cavalo. Mas nenhum outro estava visível. Por fim, os seus
olhos duros pousaram na face descorada de Slone.
- Foi dura a cavalgada? - perguntou altivo.
- Muito dura, sim - replicou Slone. Ele estava estourado, no entanto mantinha a compostura.
- Agora, e os Creech? - continuou lentamente.
- Mortos. Um murmúrio percorreu os vaqueiros que se aproximaram.
- Ambos?
- Sim. Joel matou o pai, lutando para obter Lucy, e eu corri... Wild Fire passou por cima de Joel e esmagou-o.
- Bem. lamento o velhote - replicou Bostil. - Eu fazia tenção de o indemnizar. Mas o pateta do rapaz... E, Slone, estás cheio de sangue.
Avançou e desviou o lenço.
- Foste atingido, hem? Bem, não é profundo e isso já é bom. Quem te alvejou?
- Cordts.

134 - 135

- Cordts - Bostil avançou de repente com aspecto ameaçador.
- Sim. Cordts. O seu bando foi atrás de Creech e encontrámo-nos. Agora não posso contar, mas foi o inferno. E Cordts está morto... e Hutchinson também... e outro
dos seus homens. Bostil, eles nunca mais o vão incomodar.
Bostil ergueu ambos os punhos.
- Quer dizer que fizeste a Cordts e a Hutchinson o que fizeste a Sears? - explodiu.
- Eles morreram. Foram-se, Bostil, juro por Deus - replicou Slone. Bostil perdera a sua fúria e parecia só ter ficado com uma muda
admiração. Então fez-se um momento de silêncio.
- Onde está o garanhão vermelho? - perguntou Bostil.
Slone ergueu os olhos escuros dolorosamente, no entanto ainda brilhantes ao encarar Bostil.
- Wild Fire morreu.
- Morreu! - exclamou Bostil.
Seguiu-se outro momento de surpresa silenciosa.
- Abateram-no? - continuou.
- Não.
- Quem o matou?
- O King, senhor. Matou-o pelo seu pé.
Os pesados ombros de Bostil tremeram. A sua mão tremia ao afagar a crina de King. o primeiro toque desde o regresso do seu favorito.
- Slone, como foi? - disse abatido.
- Sage King matou Wild Fire pelo seu pé. Uma grande corrida, Bostil. Mas Wild Fire morreu... e aqui está King. Não me faça mais perguntas. Eu quero esquecer.
Bostil rodeou os ombros do jovem com o seu braço.
- Slone, se eu não sei o que sentes, ninguém sabe. Entra. Rapazes, levem-no e tratem dele.

- Nunca mais queres ir comigo ao velho campo onde eu te costumava esperar? - perguntou Slone.
- Um dia destes - respondeu ela docemente.
- Quando?
- Quando voltarmos de Durango - replicou ela. E Slone ficou silencioso, pois esta viagem a Durango e o seu significado enchiam-lhe o coração.
E nesse dia de tempestade e arco-íris, o céu azul por cima, cavalgaram só até ao vale. Mas daí, antes de regressarem, as rochas apareciam perto, e erguiam-se grandiosamente
envoltas em nuvens purpúreas e raios de luz dourada.
Pareciam sentinelas - guardiãs de um amor que nascera sob as suas rochas, no silêncio do dia e na noite estrelada. E uniam Lucy e Slone, chamando-os todos os dias,
dando-lhes uma felicidade constante e inigualável.
As últimas chuvas - chegaram e como magia, em poucos dias, a planície tornou-se verde e fresca, o cinzento tornando-se púrpura.
Todas as manhãs o Sol se erguia branco e quente num céu sem nuvens. Mas depressa o céu mostrou nuvens que cresceram e se tornaram escuras. Todas as tardes tempestades
se levantavam e o arco-íris iluminava o maravilhoso céu.
Slone e Lucy nunca cavalgaram até às montanhas, pois estas traziam- lhes recordações tão deliciosas como penosas. Lucy nunca mais voltou a montar King. Mas Slone
aprendeu a amá-lo.
Ela montava Sarchedon e gostava de galopar ou trotar atrás de Slone enquanto davam as mãos e olhavam o horizonte. Mas o seu olhar evitava o norte, a distância das
ravinas selvagens e dos planaltos quebrados e escuros.

FIM!

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